Queria poder acelerá-lo quando sei que o passar dos dias, dos meses e até dos anos vai ser medicamentoso para mim. Queria interrompê-lo para eternizar momentos que congelei no coração e, assim, nunca mais sair delesArte: Kiko

Quando ouço Caetano Veloso cantar “Tempo, tempo, tempo, tempo/ Entro num acordo contigo”, composição dele mesmo, tenho a convicção de que ele já fez esse trato. Afinal, estar nos palcos aos 82 anos, ao lado da irmã Maria Bethânia, é coisa de quem já se acertou com o tic-tac do relógio. Ainda mais porque a voz de Caetano não tem pressa durante as canções: ele não come uma sílaba sequer. Não há correria. Ouvi-lo entoar ‘sin-ge-la’, uma palavra bem antiguinha e que tanto amo, me faz sentir que ele está em paz com a cronologia da própria vida. Já quando escuto Gilberto Gil musicar a letra de sua autoria em “Tempo Rei, ó tempo rei, ó tempo rei/ Transformai as velhas formas do viver”, eu renovo a esperança em dias bons e inéditos, em cicatrizes curadas, em feridas saradas e em maneiras diferentes de seguir a jornada. Já quando os meus ouvidos entram em contato com Simone perguntando “O que será o amanhã?/ Responda quem puder” — samba-enredo que fez a travessia do Carnaval da União da Ilha até chegar à voz da cantora —, eu me rendo de vez à imprevisibilidade do futuro.
O tempo, essa incógnita tão desafiadora, já foi tão cantado, estudado e escrito. Eu faço aqui uma confissão: queria agarrá-lo, colocá-lo em um potinho e administrá-lo ao meu jeito. Queria poder acelerá-lo quando sei que o passar dos dias, dos meses e até dos anos vai ser medicamentoso para mim. Queria interrompê-lo para eternizar momentos que congelei no coração e, assim, nunca mais sair deles. Aliás, a gente tem mesmo essa ilusão de que conta o tempo quando, na verdade, é ele que nos conta sobre a vida. Com sua transparência, escancara quando não saímos do lugar, mas também nos brinda com a constatação de que evoluímos. Há ainda uma mágica intrigante nos pedidos que ele nos faz e, por vezes, deixamos de ouvir. Fugimos do conflito quando há tempos que pedem o embate — não o mais odioso, mas o que expõe desconfortos e palavras não ditas. E há o tempo do silêncio, quando é preciso calar para ouvir as emoções que gritam dentro de nós.
É intrigante pensar que não dominamos o passar da vida, embora a gente teime em acreditar que sim. A cronologia das horas está no meu pulso, no relógio que vou à academia e me mostra que é uma eternidade ficar 10 minutos correndo na esteira. Está na ampulheta, em que cada grãozinho de areia vai descendo suavemente até que determinado período chegue ao fim. Aí, viramos novamente o objeto para recontar. O tempo, aliás, não anda de ré, mas ama quem gosta do prefixo “re”: refazer, recomeçar, recuperar, regenerar. Está aí, aliás, um desafio para a minha alma que nasceu gostando da permanência. Ficar é, muitas vezes, mais confortável do que partir ou deixar ir. Mas já aprendi e tenho gostado muito de reexistir. Em novos lugares, em novos laços, em novas Anas.
Eu também queria ter todo o tempo do mundo, em alguns momentos, para cuidar do que se passa no meu coração. Para prestar atenção às emoções e colocá-las para dançar com canções que amo ou para viver dias ensolarados ao ar livre. Mas sei que não estamos no controle. Vira e mexe, aliás, me pego atrás de referências pessoais para me situar em fatos ocorridos durante a pandemia da covid-19. Faz cinco anos que começamos a dizer, de um modo geral, que não deixaríamos o amor, os encontros e as possibilidades de vida para amanhã. Mas sinto que ainda achamos que dá tempo de adiar um café, uma reunião ou um abraço. “A gente vai se falando”, prometemos aos amigos, mesmo sabendo que certos planos prescrevem. Por outro lado, “sonhos não envelhecem”, como escreveram Milton Nascimento e os irmãos Márcio e Lô Borges. O desafio é renová-los.
Curiosamente, este texto começou a ser escrito mentalmente enquanto eu dirigia, após sair da academia. Ainda iria passar no hortifruti, antes de chegar em casa, e só pensava que precisava dar tempo de ficar em frente ao laptop sem me esquecer do que o coração havia me ditado naquele trajeto. Felizmente, a memória desta escrita não se apagou. Nem a constatação de que, por mais que a gente coloque relógios valiosos e multifuncionais no pulso, não podemos deixar escapar o que é mais caro na vida: o tempo com quem amamos.