Além disso, o fato de a flor ser soprada, desfazendo-se com facilidade, permite que suas sementes sejam lançadas ao vento, se espalhem e, no período certo, floresçam novamenteArte: Paulo Márcio

Meu intuito era achar uma foto que ficou gravada na memória, mas parece que se perdeu aqui em casa. No clique em questão, eu aparecia no antigo Tivoli Park, na Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul do Rio. Eu era criança na época, talvez caminhando para a pré-adolescência, e lembro que usava um brinco grande, provavelmente uma argola. Sempre achei curioso o fato de estar com aquele acessório pouco discreto ainda sendo uma menina, mas imagino que eu deva ter gostado da ideia naquele momento. O fato é que, ao vasculhar memórias em um dia de folga, não encontrei esse registro, mas descobri um álbum cheinho de outras relíquias de família. Assim, eu me sentei na cama do quarto do meu pai e fiquei passando as folhas daquelas lembranças, enquanto sorria, apontava para as imagens e me surpreendia com as recordações que viravam presente novamente.
Uma foto que adorei ter visto é a que apareço de gesso no braço direito, com direito a uma espécie de tipoia — imagino que o material fosse uma gaze, que passava pelo pescoço e sustentava o local da fratura em determinada posição. O que mais importa para mim nessa captura não é o osso quebrado, mas o que aconteceu depois dali. Lembro que tínhamos uma viagem marcada em família — meus pais, minha irmã e meu irmão — para um hotel fazenda na Serra Fluminense que costumávamos frequentar. E assim fomos nós — eu com o meu braço quebrado. Essa história me marcou muito porque simboliza exatamente a forma como me recordo da minha mãe: se houvesse cura para as dores físicas ou emocionais, a gente seguia em frente. Mudando os planos, mas sem colocá-los por água abaixo. Assim, apareço em uma daquelas fotos com o braço engessado, mas posando em uma pequena ponte adornada com cordas. Em outra, estou bem longe da câmera, mas eu me reconheço em um balanço. Em mais uma captura, estou ao lado do meu irmão. Meus cabelos estão presos em um rabo de cavalo, talvez para não ficarem caindo toda hora nos olhos e me incomodarem. Reparei ainda que, no outro braço, eu exibia pulseiras — os acessórios, sempre eles, estavam presentes. Afinal, o gesso não poderia me impedir de me arrumar — e isso também é a cara da minha mãe!
Peguei aquele álbum e levei para o meu quarto, feliz da vida. Era como se tivesse encontrado ali uma razão para ser do jeito que sou. Imediatamente, pensei que talvez seja por isso que algumas pessoas costumam dizer que vejo o copo meio cheio em vez de meio vazio. Suspeito ter herdado da minha mãe essa teimosia em não cancelar passeios nem a felicidade por conta de contratempos. É claro que há aquelas pancadas da vida difíceis de enfrentar — as que nos tiram o sorriso, a fé e até a esperança. Mas, enquanto havia possibilidade de regeneração, a minha mãe não entregava os pontos. E isso valia para ossos quebrados e corações partidos. Inclusive, eu já era bem crescidinha quando ela ainda me dava colo nos desencontros da vida.
Talvez venha daí a impressão de uma das primas do meu pai, a querida Rose, que diz que eu consegui renascer após a morte da minha mãe. Vejo sentido nessa constatação porque eu também achava que iria me despedaçar com a partida dela. Inclusive, soube através de pessoas próximas que a minha mãe se preocupava muito comigo — ser a filha solteira e sem filhos dava a ela a sensação de que eu estaria desprotegida. Mas é aí que vejo novamente o copo cheio. Não quis ser mãe, mas sou tia e madrinha, vocação que não precisei escolher, mas assumi com todo o amor do mundo. Acompanhei cada fase dos meus sobrinhos, inclusive os sustos, como o dia em que um deles fraturou o ombro praticando esporte e precisou operar. O outro também já quebrou o braço e, curiosamente, embarcou logo em seguida para uma viagem que a minha irmã já havia programado para a praia. Essa sempre foi a lição que tivemos em casa: se der para reconstituir, seguiremos em frente. De novos modos, com planos diferentes, mas nunca desfeitos.
Com a minha mãe, também aprendi a lidar com as adversidades com doçura. Afinal, a delicadeza sempre foi a sua potência. Assim, resgato algo que ouvi recentemente sobre o dente-de-leão, aquela planta que parece tão frágil, mas que descobri ser capaz de resistir a climas extremamente frios e até a geadas. Além disso, o fato de a flor ser soprada, desfazendo-se com facilidade, permite que suas sementes sejam lançadas ao vento, se espalhem e, no período certo, floresçam novamente. As memórias que guardo no coração são assim: em algum momento, algum sopro da vida faz com que as lembranças sejam conduzidas pela brisa do tempo até o presente, como aconteceu no dia em que encontrei o álbum de fotos. Talvez este texto possa ter um pouco do dente-de-leão: aqui exponho minhas vulnerabilidades e esta escrita pode voar pelo mundo e fazer com que você se lembre de alguém que nunca entregou os pontos e até hoje é sua inspiração. A ternura dos afetos há de se multiplicar.