E assim engatamos uma prosa tão longa que nem vi o tempo passar. Ficamos nós três — eu, a cabeleireira e a minha amiga — falando sobre a vida. Juntas, resgatamos memórias e compartilhamos dilemasArte: Kiko
A arte da conversa
Assim, durante mais de duas horas no salão, dividimos sensações que nos aproximam, mesmo sabendo que cada uma de nós tem um universo particular
Na véspera da minha ida ao salão de beleza, eu conversava com uma amiga, por mensagem, e dizia justamente que iria cortar e retocar os tons iluminados do meu cabelo no dia seguinte. Ela comentou que não gostava de fazer mechas, não pelo processo em si, mas porque ela ficava entediada durante o longo tempo em que precisava esperar para os produtos agirem nas madeixas. Respondi que achava bem tranquilo, e ela resumiu perfeitamente uma parte da minha personalidade: "É porque você gosta de conversar!".
Com aquela frase na cabeça, segui para o salão no outro dia, logo pela manhã. Assim que entrei, dei de cara com uma amiga que estudou comigo. Nós frequentamos o mesmo colégio do Jardim de Infância até a antiga Oitava Série do ginásio, em Duque de Caxias, na Baixada, e, de lá, rumamos para o Segundo Grau em uma escola no Catete, na Zona Sul do Rio.
Aliás, não era a primeira vez que a gente se encontrava ali no salão. Naquele dia, ela já estava fazendo as unhas quando cheguei e não demorou a acabar. Mas, assim como eu, ela ama papear! E assim engatamos uma prosa tão longa que nem vi o tempo passar. Ficamos nós três — eu, a cabeleireira e a minha amiga — falando sobre a vida. Juntas, resgatamos memórias e compartilhamos dilemas.
Teve espaço para a preocupação com os filhos, no caso das duas, e dos sobrinhos, no meu caso. Teve história de nervosismo com os pequenos quando crescem e a preocupação de achar a dosagem certa para dar liberdade a eles. Aconteceu quando minha amiga contou que deixou o filho, já adolescente, andar à beira da praia com um amigo na Região dos Lagos e acabou se desesperando porque os meninos se esqueceram da vida enquanto conversavam e demoraram a voltar.
Em algum momento do nosso bate-papo, outra cliente do salão comentou sobre um parente, que já tem uns 30 anos, e havia deixado a mãe aflita ao lhe enviar um vídeo pulando de bungee jump durante uma viagem. E ali eu confirmei que somos unidos por muitos sentimentos em comum. Sinto que compartilhamos essa sensação de que filhos, sobrinhos e netos são sempre miúdos de alguma maneira. Inclusive, em determinado momento daquele bate-papo, a minha amiga atendeu o celular e disse: "Fala, bebê". Ela se referia ao filho de 11 anos. Parece que sempre encontramos uma forma carinhosa de acreditar que ainda somos colo para eles.
No entanto, sabemos que eles crescem e já querem andar sozinhos. Inclusive, uma das sensações que atravessa gerações é o mico. Na nossa época do Segundo Grau, eu e minha amiga tínhamos vergonha de chegar em uma Kombi azul ao colégio na Zona Sul. Hoje, os filhos dela e os meus sobrinhos acham mico quando as mães fazem comida para as resenhas, que é o modo como eles chamam os encontros hoje em dia.
Assim, durante mais de duas horas no salão, dividimos sensações que nos aproximam, mesmo sabendo que cada uma de nós tem um universo particular. Inclusive, sempre acredito que podemos aprender algo com a jornada do outro. Foi assim quando a minha cabeleireira me explicou que, para achar a tonalidade certa para as mechas de cada cabelo, é preciso atenção e cuidado, além de técnica. Segundo ela, respeitar o tempo necessário para que uma nova cor se revele é como se ela chegasse à minha casa pedindo licença e sentando calmamente para tomar um café. Por outro lado, um serviço feito sem esse carinho seria como se ela invadisse o meu espaço arrombando a porta.
Achei muito interessante essa metáfora e comprovei mais uma vez, naquele dia, que gosto mesmo de conversar, de papear, de puxar assunto e de ver que a prosa toma rumos que nem imaginamos. Também amo um cafezinho com bolo, sem pressa de ir embora ou de saber logo tudo. Um bom papo também é uma arte, em que não saímos arrombando a porta da vida do outro, mas olhamos com calma para o espaço em que somos convidados a entrar.
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