Dali em diante, passei a capturar um pouco da magia daquele momento. Usei o meu olhar curioso e o coração aberto a afetos, que costumam me guiar pela vidaArte de Kiko com foto de Tyno Cuz/ Divulgação/ Renascença
Aplaudam!
Naquela noite, tive a certeza de que o samba regenera, para citar a palavra escrita na pulseira de crochê verde, cor da esperança, que adornava o meu braço direito
A placa azul na calçada, onde se lia ‘Clube Renascença’, e a movimentação de pessoas na entrada sinalizavam que eu havia chegado ao meu destino na segunda-feira, por volta das 19h. Havia fila para entrar no local e, durante a espera, já era possível ouvir a música que ecoava lá dentro: “Brasil/ Tira as flechas do peito do meu padroeiro/ Que São Sebastião do Rio de Janeiro/ Ainda pode se salvar...”. Era ‘Saudades da Guanabara’, canção de Moacyr Luz, em parceria com o saudoso Aldir Blanc e Paulo César Pinheiro. Moa, como é chamado, lidera o Samba Trabalhador, tradicional roda de samba que comemorava seus 20 anos naquela noite. Era dia de festa, com direito a bolo e convidados especiais, como Dorina, Augusto Martins, Karinah, Roberta Nistra e Hamilton de Holanda, o craque do bandolim.
Dali em diante, passei a capturar um pouco da magia daquele momento. Usei o meu olhar curioso e o coração aberto a afetos, que costumam me guiar pela vida. Percebi a empolgação de gente jovem e de senhores entoando clássicos que sempre emocionam. Logo na entrada, vi uma barraquinha que vendia blusas com estampas diversas, entre elas uma infantil em que estava escrito: “Cria do samba”. Gostei da peça que deve vestir um futuro amante do ritmo. Afinal, acredito muito na identificação das pessoas com o lugar, as experiências e os hábitos em que foram criadas.
Naquele palco de resistência cultural afro-brasileira que já havia visitado algumas vezes, fiquei admirando o painel com o desenho de grandes nomes da música. Estavam ali retratados João Nogueira, Beth Carvalho, Clara Nunes, Aldir Blanc, Nelson Sargento, Elza Soares, Dona Ivone Lara, Dominguinhos do Estácio, entre tantos outros. Uma espécie de varal de lâmpadas acesas completava o cenário a céu aberto. Na minha imaginação, era como se aquelas estrelas estivessem abençoando a roda de samba.
Foi realmente uma noite de celebração. Na cantoria de cada pessoa com seu universo tão único, eu confirmava que o samba é mesmo universal. O refrão estava na ponta da língua da funcionária que fez a revista na minha bolsa logo na entrada e em outra senhora com quem me deparei quando cantávamos ‘O Sol Nascerá’, de Cartola e Élton Medeiros, entoado por Karinah, uma das convidadas da noite: “A sorrir eu pretendo levar a vida/ Pois chorando eu vi a mocidade/ Perdida”. Pouco antes, a mesma Karinah havia cantado Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito: “Quando eu piso em folhas secas/ Caídas de uma mangueira”. Naquele momento, eu me lembrei de um dia, há quase 20 anos, em que estive no Candongueiro, outro reduto de resistência, em Niterói. E assim confirmei que o samba é essa arte genuína que se eterniza na memória e no coração de cada um de nós.
Naquela noite, tive a certeza de que o samba regenera, para citar a palavra escrita na pulseira de crochê verde, cor da esperança, que adornava o meu braço direito. Tenho usado esse acessório — feito pela Marilene, uma das mulheres atingidas pelas enchentes no Rio Grande do Sul — como amuleto, para lembrar que a gente se restaura de tempos em tempos. Felizmente, o samba renova nossas emoções ao promover o encontro de Hamilton de Holanda com Junior de Oliveira, Nilson Visual, Alexandre Marmita, Mingo Silva, Daniel Neves e Gabriel da Muda, os outros músicos da roda. Foram momentos mágicos, em que a música me fez companhia. Aliás, amei ouvir uma canção que resume aquela celebração: “Por isso, quando o samba enfeitar a voz/ Aplaudam, pois o samba somos nós!”.

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