Chico César consegue a proeza de resumir algo que não se pode alcançar com as mãos, somente com o coração, como o sentimento da "pessoa que enamora"
Afinal, é no avesso de uma roupa que estão as costuras e as etiquetas, que não colocamos à mostra. É o oposto do lado considerado 'certo' de uma peça. Mas o que seria o amor senão a chance de embaralhar as nossas certezas? - Arte Paulo Márcio
Afinal, é no avesso de uma roupa que estão as costuras e as etiquetas, que não colocamos à mostra. É o oposto do lado considerado 'certo' de uma peça. Mas o que seria o amor senão a chance de embaralhar as nossas certezas? Arte Paulo Márcio
A música surgiu despretensiosamente no meu WhatsApp, com um link para o Spotify, em um dia durante a semana, desses que a gente costuma chamar de comuns. Afinal, crescemos com a ideia de que o extraordinário está na sexta-feira, no fim de semana, nas férias ou nas datas festivas. Mas a canção veio como um brinde no finalzinho de outono para me lembrar de que as belezas corriqueiras são lindas. Surgem inesperadamente. E talvez sejam tão incríveis porque a gente não se prepara para recebê-las como quem faz as malas para uma viagem tão sonhada.
Foi assim que conheci 'Estado de Poesia', composição de Chico César. É incrível como algo que pode ser tão conhecido por alguém nos aparece com ineditismo em determinado momento da vida. É por isso que o desconhecimento me fascina: ele me lembra que há muito a ser explorado neste mundo. Morrerei sem saber um bocado sobre a vida — e que bom que seja assim! Espero seguir sempre ávida por novidades.
Descobri que Maria Bethânia interpretou a canção em 2013 no DVD 'Carta de Amor' e, em pouco tempo de pesquisa na Internet, eu já estava assistindo a um vídeo da cantora baiana entoando os versos com a força e a vivacidade que são suas marcas registradas. "Para viver em estado de poesia/ Entranharia nesses sertões de você", diz a composição escrita por Chico César, em referência à paixão por uma paraibana. Procurei também por algumas entrevistas dele e descobri que o álbum lançado pelo músico em 2015, com o mesmo nome da música, foi fruto de uma imersão à terra natal, a Paraíba, como gestor de cultura.
'Estado de Poesia' é uma daquelas maravilhas da escrita que me fazem pensar: "Como essa pessoa pode ser tão genial?". As palavras são de todos nós, mas a forma como algumas pessoas as conectam é totalmente mágica. "É belo vês o amor sem anestesia/ Dói de bom, arde de doce/ Queima, acalma/ Mata, cria": diz outro trecho da letra. O amor carrega opostos de sentimentos e atitudes. Não acredito que sejamos lineares nesse afeto e é isso que alimenta a sua existência.
Não é à toa que João Gomes, no recente projeto 'Dominguinho', ao lado de Jota.Pê e Mestrinho, canta: "E pouco a pouco vai perdendo o medo/ De se ver do avesso por saber amar". Afinal, é no avesso de uma roupa que estão as costuras e as etiquetas que não colocamos à mostra. É o oposto do lado considerado 'certo' de uma peça. Mas o que seria o amor senão a chance de embaralhar as nossas certezas? Voltando a Chico César, 'arde de doce' é a contradição de um sentimento que não conseguimos explicar.
Então, como não crer no estado de poesia após ouvir essa canção? É possível olhar para o lado, ver tudo igual e, ao mesmo tempo, diferente. Nem sempre o que muda é o cenário, mas a forma como vemos o que está ao nosso redor. Nem sempre o que muda é o caminho, mas a maneira como estamos dispostos a percorrê-lo. Nem sempre o que muda é a chance, mas o jeito como nos permitimos agarrá-la. Chico César consegue a proeza de resumir algo que não se pode alcançar com as mãos, somente com o coração, como o sentimento da "pessoa que enamora": "Chega tem hora que ri de dentro pra fora/ Não fica nem vai embora/ É o estado de poesia".
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