opina2marARTE O DIA

Esta é uma história que já foi contada e recontada, mas, como nunca chega ao fim, é necessário retomá-la. É sobre a separação dos Poderes da República e a indispensável harmonia entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Do respeito aos limites constitucionais para uma convivência democrática.

Nos últimos tempos, com um Executivo fascista e sem limites, vivenciamos momentos difíceis nos quais o Legislativo, em boa parte, foi cooptado e não se houve com a plenitude de seus poderes, faltando ao Brasil. Foi preciso um Judiciário forte e corajoso para manter a estabilidade institucional. A história há de fazer justiça, especialmente ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A Democracia resistiu pelo desassombro de alguns ministros da Cortes Superiores, os quais contaram com o apoio dos seus pares. A Constituição prevaleceu e a eleição e a posse de um democrata fizeram o país seguir nos trilhos da normalidade.

Uma boa parte da sociedade organizada também se alinhou à Constituição e, cada qual nos limites das suas possibilidades, esteve ombreada com o Judiciário numa resistência que permitiu ao país sair do caos e respirar. Foi uma época dura, na qual parecia haver um muro erguido em meio a uma densa nuvem tóxica que nos tirava a visão e o ar. Uma muralha que separava os limites da racionalidade e dos preceitos civilizatórios, priorizando a barbárie, a violência e o ódio. Uma sociedade na qual os princípios humanistas eram solenemente desprezados e a imbecilidade tomou ares de importância ímpar.
A divisão das pessoas era uma estratégia de poder. E a ignorância era saudada entre os bolsonaristas com uma jactância que assustava. O orgulho de ser raso, imbecil e incivilizado se fazia notar nos mínimos gestos de petulância e arrogância. E, como nos ensinou Nelson Rodrigues, eles acabaram se impondo, pois eram muitos.

Com a derrota do fascismo nas urnas e a posse do presidente Lula, o país respirou. A resistência das instituições e da sociedade ao golpe do dia 8 de janeiro parece ter consolidado a nossa jovem Democracia. Ainda há muito o que fortalecer para que tenhamos uma real estabilidade, pois o fascismo fincou suas garras em parte considerável do país. Existe uma espécie de seita que teima em cravar os dentes numa massa incauta, inculta e ávida por ser guiada, mesmo se for para o abismo. São cegos, surdos e só usam a voz para propagar o golpe ao Estado democrático de direito.

Mas a resposta pronta ao dia da infâmia, quando foi tentada a ruptura democrática, fez cada um de nós mais responsáveis ainda pela manutenção da estabilidade. Assim como estivemos ao lado da Suprema Corte, criticando parte do Congresso Nacional e enfrentando de frente o Executivo, forçoso apontar, agora, mais do que nunca, os excessos consolidados de maneira antidemocrática em qualquer dos poderes. Daí a necessidade premente de voltarmos ao tema do Juiz de Garantias.

Quando o menino de recado do bolsonarismo assumiu o cargo de ministro da Justiça, em recompensa por ter tirado Lula da disputa presidencial de 2018, ele apresentou o tal Pacote Anticrime. Um amontoado de propostas punitivas e desalinhadas que não foi submetido à discussão no seio da sociedade, da academia ou dos especialistas. Julgou o ex-juiz que poderia fazer o que bem entendia, acostumado com seus superpoderes em certa Vara de Curitiba. Pecou pela ignorância, pela arrogância e pelo desconhecimento de como funcionam os Poderes numa Democracia.
Foi prepotente com o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que não se curvou à maneira indelicada e até agressiva com que foi tratado. E sua resposta foi institucional: em 18.03.2019, foi oficializada, na Câmara dos Deputados, a criação de um grupo de estudos para analisar o tal Pacote Anticrime. Com prazo inicial de 90 dias, o grupo acabou durando 230 dias, com quatro prorrogações, até aprovar, em 30.10.2019, um projeto alternativo.

Boa parte desse grupo formado por Rodrigo Maia reuniu-se, durante os 230 dias, pelo menos uma vez por semana na minha casa, em Brasília, para discutir os mais diversos temas. Eram aproximadamente dez ou 12 deputados e cinco ou sete advogados criminais. Um dos assuntos mais caros ao grupo era a instituição do Juiz de Garantias. Para mim, a maior conquista na área criminal e que impediria, ou dificultaria muito, a presença de juízes parciais, golpistas, vingadores e políticos como o ex-juiz e ex-ministro da Justiça e os seus seguidores.

A ideia foi, primeiramente, debatida de forma ampla no grupo de trabalho e na sociedade. Inúmeras audiências públicas foram feitas com especialistas na Câmara e no Senado. A discussão profícua e madura fez com que o projeto fosse aprovado em 4.12.2019 na Câmara dos Deputados, e em 11 de dezembro do mesmo ano no Senado Federal. Como o assunto tinha sido exaustivamente enfrentado, as aprovações nas duas Casas se deram com expressivas votações. Era, pensávamos, o fortalecimento da Democracia, a força que emana da vontade popular. Ledo engano.

Como naquele final de 2019 o ex-ministro já tinha caído em desgraça junto ao então presidente Bolsonaro, o projeto não foi vetado, como era o desejo do ex-juiz que viu o seu Projeto Anticrime ser completamente desfigurado. Em 24.12. 2019, o presidente da República o sancionou. A Lei Anticrime entraria em vigor no dia 23 de janeiro de 2020, de acordo com a vontade popular representada pelos votos no Congresso Nacional. É assim que se fortalece o Estado democrático de direito. Especialmente em casos nos quais as duas Casas, Câmara e Senado, têm a grandeza de fazer audiências públicas para ouvir especialistas.

Um dia antes de a lei entrar em vigor, em 22.01. 2020, um ministro do Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática, sozinho, suspendeu a eficácia da implantação do Juiz de Garantias. Uma decisão que impediu de entrar em vigor uma lei votada pelas duas Casas do Congresso. Parece evidente que o Supremo, em situações excepcionalíssimas, pode dar uma liminar desse porte. Até porque, era uma decisão ad referendum do Plenário.

Ocorre que, 1.135 dias se passaram e a decisão monocrática continua em vigor sem ter sido submetida ao Plenário da Corte. Um verdadeiro tapa na cara do Congresso Nacional. Nesse caso, temos um exemplo típico de uma ordem que cassou a vontade popular e silenciou a Câmara e o Senado. E que fere o equilíbrio entre os Poderes e que exigiria dos deputados e senadores uma resposta à altura. Numa Democracia que se preze, os democratas têm o dever de apoiar cada um dos Poderes quando eles fazem jus ao apoio. Mas têm a obrigação de apontar o dedo para os abusos, para as omissões e para a falta de visão institucional de qualquer representante dos Três Poderes.

O Supremo já se mexeu e aprovou, recentemente, o Artigo 240 do Regimento Interno, que estabelece que a liminar vigorará pelo prazo de 90 dias, prorrogado por mais 30 dias, se o acúmulo de serviço justificar. É muito tempo, mas já é um avanço. Vamos acompanhar o cumprimento do Regimento e cobrar. O Congresso permanece calado sem se dar o respeito. Se as Casas Legislativas não garantem sequer o cumprimento das leis que aprovam, é porque a Democracia anda tão frágil que abre brechas para as tentativas de romper a institucionalidade, como ocorreu em 8 de janeiro.

“O Supremo Tribunal Federal pode muito, mas não pode tudo, porque nenhum poder pode tudo”. Frase dita por mim, da Tribuna do Plenário do Supremo, quando do julgamento da Presunção de Inocência.

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay