Gastão Reis, colunista de O DIA divulgação
A figura de Dom Pedro I vem sendo distorcida. Seu lado impulsivo, no Brasil das últimas décadas, subiu ao palco sem dar espaço à sua visão político-institucional, que nos permitiu ser uma exceção invejada na América Latina ao longo do século XIX. Historiadores estrangeiros que se debruçaram sobre nossa História o tratam levando em conta os dois pratos da balança. O positivo pesa bem mais. Nossos diplomatas produziram os melhores relatos de nossas grandes figuras, dando-nos a exata medida do que foram e de suas obras. Cabe ressalvar as obras dos historiadores José M. de Carvalho e de Otávio Tarquínio de Souza, em seu livro 'A Vida de D. Pedro I', dentre poucos outros.
Tomemos o caso do historiador americano Neill Macaulay e seu livro 'Dom Pedro I – A luta pela Liberdade no Brasil e em Portugal – 1798 -1834'. Este subtítulo diz muito sobre as convicções íntimas de Dom Pedro I. No início do livro, o autor nos fala de D. João VI, tratando-o com consideração e respeito por suas iniciativas e por seu legado. Nada a ver com aquela visão do medroso, fujão e guloso. A vinda para o Brasil foi uma retirada estratégica, reconhecida por Napoleão, que disse ter sido enganado por ele. Sua ausência tornou Portugal inconquistável, mesmo que fisicamente ocupado. Sem sua assinatura, qualquer tratado imposto por Napoleão seria inválido.
Vejamos, inicialmente, D. Pedro I já quase adolescente. Uma ampla pesquisa sobre ele do Prof. Laudelino A. de Oliveira Lima é reveladora. Ainda com apenas nove anos de idade, na travessia do Atlântico em direção ao Brasil, o mar estava muito revolto, e sua família se preocupou em saber onde estava o Pedrinho. Foram achá-lo amarrado ao mastro do navio pela cintura por uma corda, lendo, em latim, a Eneida, poema épico de Virgílio que conta a saga do troiano Eneias, que seria o ancestral de do todos os romanos. Formava assim, desde cedo, seu hábito de ler duas horas por dia ao longo da vida.
O simples fato de ser capaz de ler em outra língua, mesmo sendo o português a língua mais próxima do latim, relembrando uma cena que se passou com Eneias ao enfrentar mares bravios, revela conhecimento de História, imaginação fértil e noção do aqui e do agora. Fazia ainda perguntas frequentes aos marinheiros e oficiais sobre navios e práticas náuticas.
Dom Pedro I nasceu, em 1798, no quarto Dom Quixote, do Palácio de Queluz, próximo a Lisboa. Era já o prenúncio de suas múltiplas andanças pelo mundo. Foi criado no bairro de São Cristóvão do Rio de Janeiro em contato direto com todos os segmentos da sociedade. Conheceu o povo de alto a baixo. Assim aprendeu a amar a nova terra e a se fazer querido pela população.
Mas pouco se fala do homem que se identificou abertamente com as ideias liberais de seu tempo. Era contra a escravidão e a favor do trabalho assalariado por entender que o instituto servil corrompia não só o escravo, mas também o senhor. Ou do músico, que teve uma abertura sua regida pelo grande Rossini. Ou ainda dele, como general de gênio, que soube conduzir a campanha constitucionalista exitosa contra Dom Miguel, seu irmão absolutista. E mais ainda, em certa medida, do legislador que deixou sua marca em duas dentre as primeiras cartas constitucionais adotadas no mundo, a nossa (1824) e a portuguesa (1826), que foram, até hoje, as que mais duraram em ambos os países. Fato que reflete qualidade jurídica.
Na verdade, D. Pedro I foi sempre marcado pela dualidade. Foi, de fato, política, geográfica e até fisicamente dividido. No plano político, tendo sido criado no absolutismo, fez uma opção constitucional de limitar o poder real. Na geografia, um oceano separava Portugal do Brasil, acentuado a dificuldade geopolítica de manter os dois países unidos. Fisicamente, a morte comprovou essa dualidade: o coração na
cidade do Porto e os ossos no Brasil, em São Paulo.
Se ele, por vezes, errava no varejo, nunca se equivocou no atacado. Foi assim no memorável Dia do Fico, em que não se omitiu perante a terra que o acolhera em plena adolescência e juventude. Assim foi quando optou por proclamar nossa independência ao invés de aceitar reduzir o Brasil à condição de colônia. Foi assim ainda quando preferiu limitar o poder real a continuar nas vias tortuosas do absolutismo, em especial ao dar poderes ao Parlamento de controle efetivo sobre o orçamento do Império na Carta de 1824. E assim foi, mais uma vez, quando resolveu abdicar em 1831 ao invés de jogar o país numa provável guerra civil e ir lutar contra seu irmão absolutista para que Portugal também tivesse uma Constituição.
A Constituição de 1824 é criticada por ter sido outorgada e não promulgada. A primeira constituinte brasileira, dissolvida, ia na direção errada de emascular o poder moderador. A frase de Dom Pedro I, "Tudo para o povo, nada pelo povo", é sempre vista de modo simplista. A visão dele era bem mais sofisticada. Por trás dela, estava sua preocupação com o populismo, sempre o atestado de óbito das democracias. Deu
ainda combate draconiano à corrupção com a lei de 15 de outubro de 1827.
Por fim, a questão da liberdade de imprensa, que encontrou em Pedro I um guardião, a despeito das críticas que sofria nos jornais. Numa única vez, José Bonifácio propôs, em dado episódio, cassar a licença de funcionamento de um jornal no Rio de Janeiro, que inicialmente foi aceito por D. Pedro I, mas que logo voltou atrás, deixando José Bonifácio colérico.
Quanto ao poder moderador, atribuição exclusiva de Chefes de Estado, continua vivo, com atribuições menos amplas do que o do nosso no século XIX, nas figuras de presidentes e monarcas de nossos dias, com a função básica de sanar conflitos entre os outros três poderes. Esse mecanismo de controle do andar de cima foi destruído com a chegada da república.
No 7 de setembro, há o que comemorar, mas também a lamentar: a perda, até hoje, do sólido arcabouço político-institucional que tínhamos para coibir os desmandos do andar de cima.
Tomemos o caso do historiador americano Neill Macaulay e seu livro 'Dom Pedro I – A luta pela Liberdade no Brasil e em Portugal – 1798 -1834'. Este subtítulo diz muito sobre as convicções íntimas de Dom Pedro I. No início do livro, o autor nos fala de D. João VI, tratando-o com consideração e respeito por suas iniciativas e por seu legado. Nada a ver com aquela visão do medroso, fujão e guloso. A vinda para o Brasil foi uma retirada estratégica, reconhecida por Napoleão, que disse ter sido enganado por ele. Sua ausência tornou Portugal inconquistável, mesmo que fisicamente ocupado. Sem sua assinatura, qualquer tratado imposto por Napoleão seria inválido.
Vejamos, inicialmente, D. Pedro I já quase adolescente. Uma ampla pesquisa sobre ele do Prof. Laudelino A. de Oliveira Lima é reveladora. Ainda com apenas nove anos de idade, na travessia do Atlântico em direção ao Brasil, o mar estava muito revolto, e sua família se preocupou em saber onde estava o Pedrinho. Foram achá-lo amarrado ao mastro do navio pela cintura por uma corda, lendo, em latim, a Eneida, poema épico de Virgílio que conta a saga do troiano Eneias, que seria o ancestral de do todos os romanos. Formava assim, desde cedo, seu hábito de ler duas horas por dia ao longo da vida.
O simples fato de ser capaz de ler em outra língua, mesmo sendo o português a língua mais próxima do latim, relembrando uma cena que se passou com Eneias ao enfrentar mares bravios, revela conhecimento de História, imaginação fértil e noção do aqui e do agora. Fazia ainda perguntas frequentes aos marinheiros e oficiais sobre navios e práticas náuticas.
Dom Pedro I nasceu, em 1798, no quarto Dom Quixote, do Palácio de Queluz, próximo a Lisboa. Era já o prenúncio de suas múltiplas andanças pelo mundo. Foi criado no bairro de São Cristóvão do Rio de Janeiro em contato direto com todos os segmentos da sociedade. Conheceu o povo de alto a baixo. Assim aprendeu a amar a nova terra e a se fazer querido pela população.
Mas pouco se fala do homem que se identificou abertamente com as ideias liberais de seu tempo. Era contra a escravidão e a favor do trabalho assalariado por entender que o instituto servil corrompia não só o escravo, mas também o senhor. Ou do músico, que teve uma abertura sua regida pelo grande Rossini. Ou ainda dele, como general de gênio, que soube conduzir a campanha constitucionalista exitosa contra Dom Miguel, seu irmão absolutista. E mais ainda, em certa medida, do legislador que deixou sua marca em duas dentre as primeiras cartas constitucionais adotadas no mundo, a nossa (1824) e a portuguesa (1826), que foram, até hoje, as que mais duraram em ambos os países. Fato que reflete qualidade jurídica.
Na verdade, D. Pedro I foi sempre marcado pela dualidade. Foi, de fato, política, geográfica e até fisicamente dividido. No plano político, tendo sido criado no absolutismo, fez uma opção constitucional de limitar o poder real. Na geografia, um oceano separava Portugal do Brasil, acentuado a dificuldade geopolítica de manter os dois países unidos. Fisicamente, a morte comprovou essa dualidade: o coração na
cidade do Porto e os ossos no Brasil, em São Paulo.
Se ele, por vezes, errava no varejo, nunca se equivocou no atacado. Foi assim no memorável Dia do Fico, em que não se omitiu perante a terra que o acolhera em plena adolescência e juventude. Assim foi quando optou por proclamar nossa independência ao invés de aceitar reduzir o Brasil à condição de colônia. Foi assim ainda quando preferiu limitar o poder real a continuar nas vias tortuosas do absolutismo, em especial ao dar poderes ao Parlamento de controle efetivo sobre o orçamento do Império na Carta de 1824. E assim foi, mais uma vez, quando resolveu abdicar em 1831 ao invés de jogar o país numa provável guerra civil e ir lutar contra seu irmão absolutista para que Portugal também tivesse uma Constituição.
A Constituição de 1824 é criticada por ter sido outorgada e não promulgada. A primeira constituinte brasileira, dissolvida, ia na direção errada de emascular o poder moderador. A frase de Dom Pedro I, "Tudo para o povo, nada pelo povo", é sempre vista de modo simplista. A visão dele era bem mais sofisticada. Por trás dela, estava sua preocupação com o populismo, sempre o atestado de óbito das democracias. Deu
ainda combate draconiano à corrupção com a lei de 15 de outubro de 1827.
Por fim, a questão da liberdade de imprensa, que encontrou em Pedro I um guardião, a despeito das críticas que sofria nos jornais. Numa única vez, José Bonifácio propôs, em dado episódio, cassar a licença de funcionamento de um jornal no Rio de Janeiro, que inicialmente foi aceito por D. Pedro I, mas que logo voltou atrás, deixando José Bonifácio colérico.
Quanto ao poder moderador, atribuição exclusiva de Chefes de Estado, continua vivo, com atribuições menos amplas do que o do nosso no século XIX, nas figuras de presidentes e monarcas de nossos dias, com a função básica de sanar conflitos entre os outros três poderes. Esse mecanismo de controle do andar de cima foi destruído com a chegada da república.
No 7 de setembro, há o que comemorar, mas também a lamentar: a perda, até hoje, do sólido arcabouço político-institucional que tínhamos para coibir os desmandos do andar de cima.
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Gastão Reis
Economista e palestrante
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