Festa de Iemanjá na orla carioca durante as passagens de anoreprodução Arquivo Nacional

Coerente com a história da civilização brasileira, depois de marginalizadas e perseguidas, as manifestações afrodescendentes tendem a ser sequestradas pelas elites, praticamente afastando os pioneiros de sua prática. Isso ocorreu com segmentos da música, da moda, da culinária, com o carnaval e não diferente, com eventos religiosos. Se já não bastassem a incorporação de alguns de seus ritos de fé até por outras religiões que os atacam, nas últimas décadas, a raiz foi arrancada da tradição de passagem de ano.

Ao contrário da Bahia, onde a Festa de Iemanjá é fincada no dia 2 de fevereiro, data imortalizada na letra do clássico de Dorival Caymmi, no Rio de Janeiro, até a década de 90, era a tradição litorânea da noite do dia 31. A elite carioca torcia o nariz e restringia suas festas às próprias residências, a clubes e restaurantes luxuosos, preferencialmente bem afastados da beira-mar ou com cortinas fechadas.

Os pontos preferidos para o culto eram a Ilha do Governador e Copacabana. As areias eram ocupadas por praticantes da Umbanda, Candomblé e outras vertentes, formando um imenso mosaico branco enfeitado por flores e iluminados por velas coloridas. A magia dessas festas foi seduzindo as elites, primeiramente pela curiosidade e pelo que consideravam como exotismo. Foram descobrindo as previsões e incorporando as bênçãos e a colocação de flores na água como as superstições  preferidas pela sociedade carioca.

Os luxuosos apartamentos da orla que ficavam fechados foram sendo iluminados. Hotéis e restaurantes descobriram esse filão como um de seus maiores faturamentos do calendário, só perdendo para o Carnaval.  
Pontos amarrados
O som dos atabaques foram sendo abafados pelas caixas de som. As preces, sufocadas pelas explosões dos  fogos. Os cânticos, substituídos por shows de artistas populares, alguns até internacionais. Os pontos e riscados, banidos na areia. Daí, um pulo para que o Réveillon de Copacabana fosse transformado na maior festa aberta de passagem do ano no planeta, com transmissão pela televisão para praticamente todo o mundo.

A multidão que ultrapassa os dois milhões de pessoas no entorno da Princesinha do Mar naufragou as manifestações religiosas da Rainha das águas salgadas. Os barquinhos com oferendas lançados ao mar deram lugar a imensos transatlânticos ancorados para a contagem regressiva. 
Assim, os cultos de passagem de ano, foram sendo empurrados para outras praias. No entanto, o modelo foi sendo incorporado por outras regiões, chegando ao ponto, deste ano a Prefeitura do Rio instalar 12 palcos pelo seu litoral banindo quase que totalmente os cultos nas areias. O gigantismo da festa pagã sufocou os atos de fé. Dos ritos, restou apenas a tradição do uso do branco e de jogar flores ao mar, hábitos que também estão sendo reduzidos nos últimos anos.
Retorno da Tradição
A ressurreição do culto foi graças a uma promessa após um incêndio que destruiu o Mercadão de Madureira - que se firmou como um dos maiores polos de comercialização de artigos religiosos afro-brasileiros do país. 

Atendidas as preces, em 2002, os comerciantes resgataram a tradição da referência à Rainha do Mar. Passaram a promover uma procissão que sai em carreata da zona norte até Copacabana. A tradição ressuscitada acontece no dia 29 de dezembro, já que na original noite do dia 31 os bairros litorâneos ficam intransitáveis.

Nesse pouco tempo, o retorno da Festa de Iemanjá foi reconhecido como Patrimônio Cultural Carioca e entrou para o calendário oficial da cidade. Como o próximo cai numa sexta-feira, a expectativa dos organizadores é de que ganhe ainda mais adeptos e curiosos. A concentração acontece às dez da manhã no bairro carnavalesco de Madureira , com direito a lavagem do centro comercial com água de rosas pelas mães de santo.

No começo da tarde, sai a carreata que se junta a outros religiosos que aguardam no Posto 4, onde desde cedo já estará acontecendo os esquentas com pontos, bênçãos, orações e firmações. Tendo a caridade como base das religiões afro, os praticantes pedem que as pessoas que forem assistir ou receber um passe levem três quilos de alimentos que serão destinados para famílias carentes.
Queimação
O espetáculo pirotécnico chegou ao ápice da sofisticação com 10 balsas com explosivos flutuando pela orla que este ano estarão sincronizadas com uma orquestra sinfônica. Mas nem sempre foi assim... Tudo começou com o dono da antiga churrascaria By Marius, em 1978.
Na década de 1980 o antigo hotel Meridien iniciou sua emblemática cascata no prédio de 40 andares na esquina com a Av. Princesa Isabel. Com a forte concorrência, outros estabelecimentos passaram a promover as suas queimas particulares. Com o tempo e por medida de seguranças, a organização da pirotecnia passou a ser exclusiva da prefeitura e detonadas pelos flutuantes em pleno mar.
Shows
Para evitar tumultos após a pirotecnia, em 1993, por uma questão de logística,  a prefeitura programou espetáculos na praia para que as pessoas não saíssem todas no mesmo momento. Jorge Ben e Tim Maia inauguraram essa prática e conseguiram aliviar o fluxo.

A partir dessa experiência diversas atrações são contratadas todos os anos. Já na passagem de 1993 para 1994, o britânico Rod Stewart, estreou como atração internacional. Essa apresentação entrou para o Livro dos Recordes como maior espetáculo gratuito de rock do mundo, com público estimado em 3,5 milhões de pessoas.