Mau seria se apenas um dos lados dominasse sem oposição, e suas disputas internas marcassem o limite das divergências possíveis. Uma democracia com diversidade limitada é o sonho de todo tirano
Esse alarmismo diário contra a polarização, principalmente vindo daqueles que falam de democracia o dia todo, não me parece ter muito sentido. Por haver ampla representação, sem grupos silenciados pela ignorância ou pela força — o fato de termos dois polos em disputa é, numa sociedade, sintoma de saúde, não de doença. Mau seria se apenas um dos lados dominasse sem oposição, e suas disputas internas marcassem o limite das divergências possíveis. Uma democracia com diversidade limitada é o sonho de todo tirano.
Para a polarização e para a diversidade só existe um limite: a violência. Ninguém discorda que homicídios motivados por política são intoleráveis. É, aliás, espantoso que um atentado contra a vida de um candidato à Presidência da República ainda não tenha sido esclarecido. Natural que isso faça adoecer a sociedade inteira.
Mas se violência é, sim, cuspe, tiro, pontapé e bomba, o cancelamento, a vingança e o revanchismo também são. A pancadaria é só o seu aspecto mais vulgar. Ataques à reputação e à honra também são potencialmente letais, e têm sido usados sem qualquer moderação. Em síntese, a imposição das regras para um só lado, a definição do interesse público mediante o uso de força e trapaça e os constantes ataques aos que divergem dos que mandam — tudo isso é francamente injusto.
A Justiça, se não for divina, melhor que seja pública. A Justiça privada rara vez apazigua; deixa sempre brechas para uma nova onda de agressões e vinganças. E a sucessão de vinganças é a mais pura expressão de barbárie.
O mito grego explica isso desta forma: em troca de favores divinos aos reinos coligados contra Tróia, Agamenon mata sua filha Ifigênia. Retorna vitorioso, mas não reencontra Clitemnestra, sua esposa, em clima festivo. Ela não o perdoou pelo holocausto da filha. E o mata. Orestes, irmão de Ifigênia e filho do casal sanguinário, entende também que não lhe resta alternativa senão matar a mãe. Orestes passa a ser perseguido por entidades que punem assassinos de parentes, mas os deuses, liderados por Atena, decidem que, melhor que deixar esse ciclo de violência se acabar com a morte do último envolvido, seria pôr fim a essas vinganças infindáveis por meio de um julgamento justo, com acusação, ampla defesa e julgador. Era a instituição da Justiça pública.
Não à toa, Platão dedicou sua obra principal à Justiça. Qual seria o lugar de cada um na ordem social?, perguntava. Na sociedade hiperpolitizada de hoje, fala-se em tudo menos em Justiça; e quando essa palavra aparece, é num contexto de linchamento ideológico.
A desconfiança na instituição que os próprios gregos consideravam divina encoraja o criminoso a se aproveitar das falhas do sistema, faz o injustiçado considerar o justiçamento pelas próprias mãos, leva o silenciado a espernear, xingar, gritar. A ideia de que há parcialidade e inefetividade nas instituições de Justiça é que fomenta a polarização injusta, que, esta sim, pode descambar para a violência e, dali, para a barbárie.
Rafael Nogueira é professor de História, presidente da Fundação Catarinense de Cultura e ex-presidente da Biblioteca Nacional
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