Ser é lembrar: só sabemos o que fazer quando saímos da cama toda manhã, porque lembramos o que pensamos e o que fizemos. E só por isso sabemos a direção rumo à qual estamos nos projetando. É evidente a importância da memória, mas às vezes nos esquecemos até disso.
São problemas de memória a demência e o mal de Alzheimer, mas também as neuroses diversas. Num caso, temos um excesso de esquecimento. Noutro, incompreensões, rancores, mentiras guardadas como se fossem verdades.
A prevenção contra o esquecimento progressivo é hoje uma questão de saúde pública. A longevidade torna frequentes problemas que antes eram raros. Não preciso argumentar, todos sabem: é muito triste esquecer quem são os familiares, os amigos, e, por fim, a si mesmo. Psicólogos também lidam com a memória — a terapia cura sofrimentos agudos, criados muitas vezes por más interpretações do passado, por crenças falseadoras que podem embasar atitudes autodestrutivas.
Mesmo a memória normal tem de ser educada. A boa escola treina o aluno para que saiba conjugar verbos, decorar a tabuada, declamar poemas e conservar conhecimentos de utilidade às vezes questionável, mas de imensurável valor. Técnicas mnemônicas fazem os campeões em provas e concursos. Não só de memória vivem os sábios, mas é ela o fundamento da identidade, o auxiliar número um da inteligência.
No mito grego a memória alcançou o patamar de musa (Mnemosine), bem como a história, saber organizado da memória coletiva (Clio). E foi boa intuição dos clássicos: história e memória são diferentes.
Se a memória coletiva aparece nos nomes de rua, nos museus memoriais, nas praças, nas datas comemorativas oficiais, nas festas cíclicas etc., a história é o acúmulo de informações, na medida do possível, de maneira científica, que nos permite conhecer de verdade o que aconteceu no passado.
Quando a história é bem estudada e transmitida, ela cumpre seu papel cívico, preserva as identidades, e, assim, as glórias e tragédias (não só estas), e também os sonhos. A história nos faz transcender o tempo, pondo quem a estuda em contato com a humanidade que já viveu, enquanto ajuda a imaginar aquela que viverá.
Um saber dessa importância não pode ser usurpado por interesseiros, sejam acadêmicos que desprezam o saber popular e as pesquisas independentes, sejam grupos lobistas, militantes ideológicos ou partidários, produtores inveterados de fake news (em geral, acusando inocentes do que fazem). Historiadores são zeladores, não donos -- a propriedade da narrativa não foi entregue a eles. Sua conduta deve ser republicana, de prestação de contas, não de tirania intelectual. É uma baixaria fazê-la servir tão-somente de arma às lutas presentes.
Sem exceder os limites da analogia, podemos constatar que, se não vigiarmos quanto à custódia responsável da história, teremos amnésias e neuroses de que não seremos capazes de nos curar sem deixar um sofrimento muito intenso para as gerações futuras.
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