opinião pb 19 de julho 2023paulo marcio

Dentre os filmes que ocupam um lugar especial em meu coração, o mais presente é "Coração Valente". Em tempos passados, cheguei a considerar que fosse uma verdadeira terapia moral para qualquer amigo desencaminhado.
O filme retrata a história do lendário libertador escocês, William Wallace. Sobre o personagem pouco se sabe. Então a narrativa de fato tem algo de recriação mítica. No que, para mim, não há nada de errado. Não é o que faziam os dramaturgos da Grécia Clássica?
A trama se inicia com um jovem órfão de mãe que testemunha seu pai liderar uma causa nobre, porém condenada ao fracasso, e se torna, assim, órfão também de pai. Wallace recebe cuidados de seu tio, que se torna seu mentor iniciador. Com ele, aprende línguas, estratégia, esgrima e adquire conhecimento sobre territórios e culturas ao redor do mundo. Além disso, há uma forte influência católica, sugerindo a possibilidade de sua adesão a uma ordem sucessora dos Cavaleiros Templários, extinta dois séculos antes.
Wallace jamais esquece de sua terra e de seu povo, a ponto de retornar a eles, já adulto (por volta dos trinta e cinco anos), buscando estabelecer-se como um pacífico fazendeiro e pai de família. Contudo, com ele retorna também a onda de tirania. O rei Edward I, da Inglaterra, institui a "prima nocte", um costume que concedia aos nobres ingleses o direito de desposar plebeias de terras distantes imediatamente após seus casamentos.
Após o derramamento de sangue de sua esposa, com quem se casou secretamente para evitar o inevitável, Wallace decide também liderar uma causa quase tão nobre quanto perdida, tornando-se prisioneiro e condenado à morte por traição. O que ocorre a partir desse ponto é algo a que é preciso assistir para descobrir. E até chorar.
Filmes históricos não são teses acadêmicas em formato de cinema. São histórias baseadas na História, com maior ou menor fidelidade aos fatos. Nesse sentido, "Legítimo Rei", da Netflix, aborda o mesmo contexto com maior precisão, porém com menos paixão. Eis a diferença entre um bom filme e uma obra-prima.
A direção e a atuação de Mel Gibson são exemplares: qual outro diretor-ator seria capaz de retratar batalhas com tanta meticulosidade, exibindo-se tão à vontade, quase encontrando prazer em meio a cenas das mais sanguinárias, e enquadrando todos os elementos de acordo com um sentido, simultaneamente, patriótico e cristão? Só Mel Gibson. Não é à toa que o filme foi indicado para dez categorias do Oscar em 1996, conquistando cinco prêmios.
Vale destacar os deliciosos anacronismos para o público brasileiro: o rei escocês às vezes se assemelha a Pedro I, assim como Wallace se parece com Bonifácio. Ambos são líderes, com direito ao trono, um hesitante e meio traidor, o outro um sábio guerreiro, estrategista experiente. Wallace trouxe consigo o conhecimento da antiga Roma para a nova Escócia, assim como Bonifácio disse ter trazido da antiga Europa para a nova América.
Que importa que os escoceses utilizassem ou não aquelas saias no século XIV? Que o segundo romance possa não ter existido? Que a liberdade seja um valor só mais bem desenvolvido três ou quatro séculos depois? O fato é que nos familiarizamos o suficiente com os personagens, o cenário e a trama, a ponto de lermos com interesse sobre um evento pelo qual jamais nos interessaríamos se não fosse pelo filme. Além disso, somos envolvidos pela emoção da poesia épica, coisa que nenhuma crítica ou livro de história é capaz de transmitir igual.