RAFAEL NOGUEIRA NOVADIVULGAÇÃO
Entre filtros e espelhos
Estava lendo as explicações de Isaac Kramnick sobre a democracia dos EUA, nas quais ele aponta que os americanos se debateram muito quanto à forma de eleger os ocupantes de seus cargos eletivos: uns defendiam uma democracia de filtros, enquanto outros promoviam uma democracia de espelhos.
A democracia de filtros baseia-se na ideia de que a representação deve passar por um processo de depuração. Isso significa selecionar líderes que, dotados de sabedoria, virtude e visão a longo prazo, possam agir melhor em favor do povo, ainda que este não os entenda tão bem. Eles não seriam apenas a voz imediata das massas, mas sim estadistas capazes de discernir o verdadeiro interesse público, acima de paixões momentâneas e interesses particulares. No filme O Gladiador, um Senador diz uma frase que representa bem isso: eu não sou do povo, eu sou “pelo” povo.
Já a democracia de espelhos propõe que os representantes sejam um reflexo fiel de cada um dos interesses específicos da sociedade. Nesse modelo, cada segmento da população vê-se diretamente representado, garantindo que a vontade popular seja expressa de forma imediata e sem intermediários que possam alterar seu sentido original.
Aqueles que passam pela filtragem seriam, em tese, indivíduos de elevada integridade moral e capacidade intelectual. Escolhidos por sua competência e compromisso com o bem comum, são os mais aptos a tomar as decisões ponderadas que beneficiam a nação como um todo. Eles seriam menos suscetíveis a influências passageiras ou pressões locais, mantendo-se concentrados no interesse público, suportando incompreensões e sacrifícios os mais diversos.
Já os espelhados compartilhariam diretamente das experiências e perspectivas de seus eleitores. Eram cidadãos comuns, cuja proximidade com o povo garantia que as discussões públicas refletissem as reais necessidades e desejos da população. É o tio do bar que vota no tio do bar.
Esse modelo tinha por fundamento a ideia de que a conexão imediata entre governantes e governados é o fato de nascerem e viverem num mesmo lugar, de terem os mesmos costumes, de compartilharem a visão de mundo.
Nos Estados Unidos, optou-se pelo voto indireto para realizar a purificação desejada pelos federalistas, que saíram vitoriosos. Mecanismos como o Colégio Eleitoral e a eleição indireta de senadores buscam assegurar que os cargos mais elevados sejam ocupados pelos mais preparados.
Aqui no Brasil, podemos adaptar esses conceitos ao nosso contexto. Como aqui vigora o voto direto, podemos nos propor a eleger os melhores entre nós ao menos para o Senado e para as chefias do Executivo, enquanto para parte das câmaras legislativas optaríamos por votar, sem peso na consciência, naqueles que são mais próximos e parecidos conosco, de maneira a refletir nelas a diversidade da sociedade. Conciliamos assim a necessidade de líderes qualificados com a representatividade mais direta.
A democracia de filtros só pode existir onde os eleitores souberem admirar sem inveja, e valorizar mais a humildade do que sua ostentação. Só assim é possível valorizar o mérito, reconhecer capacidades, perceber quem de fato se devota ao bem público.
Se o futebol fosse submetido à democracia de espelhos, a seleção de jogadores se daria mediante um processo eleitoral no qual votaríamos naqueles que jogam do mesmo jeito que nós. Isso não tem como dar certo. É a mesma coisa de quando estamos doentes – vamos perguntar a todas as pessoas que conhecemos qual tratamento devemos seguir, ficando com a média, ou vamos procurar um médico?
Fica a reflexão para as próximas eleições, e também para um trabalho de longo prazo. Uma democracia de filtros e espelhos, não só de espelhos, é a única maneira de termos uma república federativa digna da ideia que ela encarna -- a de que a coisa pública diz respeito a todos que dela fazem parte, especialmente àqueles que, entre nós, têm espírito público, virtude e saber.
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