Por daniela.lima
João Pimentel%3A E algum veneno antimonotoniaDivulgação

Rio - No início deste ano me surpreendi com uma pergunta de minha mãe sobre Cazuza. Queria saber o que eu achava de sua obra, de seu talento, se eu não o achava valorizado demais. Disse a ela que, na minha opinião, Cazuza foi o poeta maior de sua geração, o que vale dizer da minha geração. Mas aquilo ficou em minha cabeça. E fui ouvir Cazuza.

Na semana passada, tive dois encontros com Lucinha Araújo, mãe do cantor, que doou o acervo do marido, João Araújo, para o Museu da Imagem e do Som, onde trabalho. Foram encontros formais, apesar de um encontro com Lucinha passar sempre longe da formalidade. Em determinado momento, Rosa Maria Araújo, presidente do museu, minha chefe, perguntou se eu tinha, em meus anos de jornalismo, de crítica musical, entrevistado o Cazuza. Disse que não, que infelizmente não tive essa possibilidade, apesar de ter visto muitos shows dele desde o Barão Vermelho, mas que meu irmão era da turma dele, que eram amigos. Então Lucinha perguntou: “E ele tomou juízo?”. Não, meu irmão Pedro não tomou juízo. Como parte de sua geração não teve tempo, ou cabeça, ou juízo para seguir em frente. Assim como Cazuza, meu irmão era um poeta, compôs para Marina Lima, para Elba Ramalho, mas foi atropelado pela droga. Perdeu sua poesia pelo caminho, perdeu tempo com gente inútil e partiu antes da hora da mesma forma que o amigo. Vítima da Aids.

O primeiro encontro foi na casa de Lucinha e o segundo, na Fundação Viva Cazuza. Ali conheci o trabalho profundo e bonito que deveria servir de exemplo “pra essa gente careta e covarde”, que tem feito a nossa vida, a nossa cidade, o nosso país mais triste, roubando de quem não tem o que comer, o que vestir, onde morar. Destruindo valores básicos como a educação cotidiana, o respeito ao próximo. “Enquanto houver burguesia não vai haver poesia”.

Mas a ida lá me proporcionou também uma breve visita ao Espaço Cazuza. Uma sala repleta de discos, fotos e objetos pessoais do artista. Nesta volta ao tempo, lembrei do meu irmão, da nossa infância. Ele passou como um raio por aqui. Como tantos outros, como Cazuza mesmo, viveu dez anos a mil, preferiu do que viver mil anos a dez. É como se tivesse a consciência de que viveria pouco. Ele mesmo dizia isso. Sinto até hoje, quase 20 anos depois, muita falta do humor dele. Da velocidade de raciocínio, da poesia rascante, debochada, crua, na ferida da alma da gente.

Talvez minha mãe ao ouvir, ao sentir Cazuza, lembre da tragédia, da dor da perda de um filho amado. “Só as mães são felizes”. “O amor na prática é sempre o contrário”, dizia meu roqueiro predileto. Mas “a tristeza é uma maneira da gente se salvar depois”, e a gente sobrevive sabe-se lá como. Já para mim, ouvir Cazuza é uma redenção. Redenção de uma geração que ganhou a liberdade como um fardo pesado pós ditadura militar. Olha só, seus pais não puderam, perderam, apanharam, mas vocês agora têm que justificar a liberdade. “Eles sabem que amar é abanar o rabo/ Lamber e dar a pata”, mas Cazuza não abanou o rabo para ninguém, e deu patadas poéticas, inteligentes, debochadas, carioquíssimas. E cantou o amor livre, a vida livre, Nelson Cavaquinho e Cartola.

Ele, meu irmão e outros, sobreviventes ou não, quiseram viver perto do fogo, flertando com o precipício, insistindo em voar independentemente das condições do tempo. Como escreveu certa vez meu pai, era “bunda de fora ou calça de veludo”. Tenho muito orgulho do meu irmão, tenho orgulho de ter Cazuza na trilha dos momentos mais bacanas, emocionantes, poéticos e sonhadores da minha existência. O olhar do Cazuza é o do poeta que “fecha o livro, sente o perfume de uma flor no lixo e fuxica”. Ele bem disse: “Pra que sonhar? A vida é tão desconhecida e mágica”.

PS: Paro por aqui. Vou aplicar Cazuza na minha mãe agora!

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