Rio - Cidades são territórios em disputa, e sobre isso já escrevi algumas vezes. Não tenho dúvidas de que, nesta disputa, tem prevalecido no Rio de Janeiro a lógica de se conceber a cidade como uma empresa, preparada para gerar lucro e prioritariamente pensada do ponto de vista urbano para facilitar a circulação de mercadorias. O Rio briga, com outras cidades com o mesmo perfil, por investimentos de grandes corporações, turistas e eventos.
É dentro dessa lógica que os botequins são reformulados por programadores visuais, o velho sobrado é vendido para a imobiliária, a panificadora vira butique de pães, o açougue vira butique de carnes, a livraria de rua é engolida pela megastore, o cinema vira igreja ou farmácia, o barbeiro da esquina fica obsoleto e a quitanda é engolida por redes de hortifrutis. O Carioca, rio do Rio, também já era.

De vez em quando deliro que a morte da cidade será anunciada com um baile em que todos estarão a caráter, com roupas do Rio antigo, som da Orquestra Tabajara e o escambau. É a tradição não mais como legado que se transmite e se renova, mas como a alma do negócio. Rompa-se a tradição com o aval dela mesma, em suma.
Paulo Mendes Campos escreveu que os bares morrem numa quarta-feira. Eu vejo e ouço falar de bares cariocas morrendo todos os dias. Esta semana procurei uma velha birosca no Centro para tomar umas geladas e encontrei um lugar estranho. Um quadro de vidro na parede, com um texto de jornal, revelou-me o que tinha ocorrido: o velho bar estava “repaginado” e “descolado”. Saí de fininho do botequim-empresa.
O problema é que esse papo de tradição não enche o caixa do bar ou os cofres das redes e franquias. Outros bares morrerão sem obituário; novos bares descolados surgirão e duas ou três notinhas nos jornais elogiarão o novo empreendimento.
Ao velho frequentador do bar defunto, como eu, resta procurar outro canto para cumprir os rituais cotidianos dos homens e mulheres comuns, com a vaga esperança de que sempre haverá um botequim de esquina onde poderemos celebrar nossos avós, chorar um pouco e recriar a vida.
Desculpem-me o desabafo, mas é que prezo as páginas em que aprendi a ler e vivo mesmo colado nelas, ainda que como lembrança, na cidade repaginada, daquilo que já não há.