Rio - Sempre achei curioso, exótico, sei lá qual expressão mais, as pessoas comerem buchada de bode. Acreditava que tal iguaria havia entrado para a culinária nordestina por pura necessidade, por falta de opção carnívora em determinadas regiões. Enfim, só tem tu, vai tu mesmo. Corte rápido.
Já disse aqui neste cafofo que sou apaixonado pela música nordestina — não apenas as juninas, ou joaninas, como se diz em muitos cantos desse Brasil —, mas por todo o cancioneiro ensinado por gente como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Marinês, Xangai e muitos outros. Um instante, maestro.
Pois um convite para cobrir o III Festival Internacional da Sanfona, nas cidades de Juazeiro e Petrolina, no fim de semana passado, me fez compreender a triste sina do bode ao som de alguns dos melhores sanfoneiros do mundo. A vida não é nada fácil para este mamífero chifrudo nas duas cidades unidas por uma ponte sobre o Rio São Francisco.
Já na vinda, uma colega que estava na cobertura, não do bichano, mas do festival, pergunta para um taxista local: “O bode é o marido da ovelha?” Sem conseguir segurar o riso, o taxista esclarece que “não, minha filha, o bode é o marido da cabra e pai do cabrito”. O desconhecimento era geral.
Mais que uma ponte, um abismo separa a pernambucana Petrolina da baiana Juazeiro. A primeira, terra natal de Geraldo Azevedo, é um pouco mais nova que a vizinha, que festejou 137 anos na quarta passada. Petrolina tem cerca de 220 mil habitantes, enquanto a população do berço de João Gilberto e Ivete Sangalo gira em torno de 160 mil. Mas o progresso tem sido amplamente mais generoso com a cidade pernambucana, com ruas asfaltadas, bons hospitais, escolas públicas decentes, um shopping center de grande centro e por aí vai. Já Juazeiro sofre com todo tipo de falta de estrutura.
Dizem que a questão é política, que a família Coelho, que manda desde sempre em Petrolina, sempre teve influência, que conseguiu levar para a ponta pernambucana da ponte os maiores investimentos. Talvez por isso o bode seja mais degustado que o coelho por essas bandas.
Mas o fato é que essas realidades distintas, que esses contrastes se dissipam quando o assunto é sanfona, gentileza e bode. O povo, tanto o de Petrolina quanto o de Juazeiro, é de uma generosidade que impressiona. Hospitaleiro, atencioso, carinhoso ao extremo. E a música aflora em cada esquina. Nos cinco dias que passei por lá, muito por conta do festival — uma ideia de Targino Gondim, o autor de ‘Esperando na Janela’ —, dormi e acordei ao som das sanfonas.
Mas é o bode que dá bode. Ele é o cara nas margens do Velho Chico. É pururuca de bode, picanha de bode, pirão de bode, rim de bode, bode refogado, cozido, assado. Só não vi carpaccio de bode. Ah, e nem cheesebode. Um taxista me disse, sem qualquer cerimônia, na volta do bodódromo, um complexo gastronômico em Petrolina, que, mal saído da fase cabrito, o bode já vai para o brejo.
— Rapaz, o bode, antes mesmo de ser abatido, já é visto como comida. Ninguém diz: “Que bode bonito!” A gente diz mesmo é: “Que bode saboroso.”
É, se a vida não tá fácil para ninguém, o bode que deixe suas barbas de molho.