Por daniela.lima

Rio - Sempre achei curioso, exótico, sei lá qual expressão mais, as pessoas comerem buchada de bode. Acreditava que tal iguaria havia entrado para a culinária nordestina por pura necessidade, por falta de opção carnívora em determinadas regiões. Enfim, só tem tu, vai tu mesmo. Corte rápido. 

João Pimentel%3A Acordei tarde%2C de bodeDivulgação


Já disse aqui neste cafofo que sou apaixonado pela música nordestina — não apenas as juninas, ou joaninas, como se diz em muitos cantos desse Brasil —, mas por todo o cancioneiro ensinado por gente como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Marinês, Xangai e muitos outros. Um instante, maestro.

Pois um convite para cobrir o III Festival Internacional da Sanfona, nas cidades de Juazeiro e Petrolina, no fim de semana passado, me fez compreender a triste sina do bode ao som de alguns dos melhores sanfoneiros do mundo. A vida não é nada fácil para este mamífero chifrudo nas duas cidades unidas por uma ponte sobre o Rio São Francisco.

Já na vinda, uma colega que estava na cobertura, não do bichano, mas do festival, pergunta para um taxista local: “O bode é o marido da ovelha?” Sem conseguir segurar o riso, o taxista esclarece que “não, minha filha, o bode é o marido da cabra e pai do cabrito”. O desconhecimento era geral.

Mais que uma ponte, um abismo separa a pernambucana Petrolina da baiana Juazeiro. A primeira, terra natal de Geraldo Azevedo, é um pouco mais nova que a vizinha, que festejou 137 anos na quarta passada. Petrolina tem cerca de 220 mil habitantes, enquanto a população do berço de João Gilberto e Ivete Sangalo gira em torno de 160 mil. Mas o progresso tem sido amplamente mais generoso com a cidade pernambucana, com ruas asfaltadas, bons hospitais, escolas públicas decentes, um shopping center de grande centro e por aí vai. Já Juazeiro sofre com todo tipo de falta de estrutura.

Dizem que a questão é política, que a família Coelho, que manda desde sempre em Petrolina, sempre teve influência, que conseguiu levar para a ponta pernambucana da ponte os maiores investimentos. Talvez por isso o bode seja mais degustado que o coelho por essas bandas.

Mas o fato é que essas realidades distintas, que esses contrastes se dissipam quando o assunto é sanfona, gentileza e bode. O povo, tanto o de Petrolina quanto o de Juazeiro, é de uma generosidade que impressiona. Hospitaleiro, atencioso, carinhoso ao extremo. E a música aflora em cada esquina. Nos cinco dias que passei por lá, muito por conta do festival — uma ideia de Targino Gondim, o autor de ‘Esperando na Janela’ —, dormi e acordei ao som das sanfonas.

Mas é o bode que dá bode. Ele é o cara nas margens do Velho Chico. É pururuca de bode, picanha de bode, pirão de bode, rim de bode, bode refogado, cozido, assado. Só não vi carpaccio de bode. Ah, e nem cheesebode. Um taxista me disse, sem qualquer cerimônia, na volta do bodódromo, um complexo gastronômico em Petrolina, que, mal saído da fase cabrito, o bode já vai para o brejo.

— Rapaz, o bode, antes mesmo de ser abatido, já é visto como comida. Ninguém diz: “Que bode bonito!” A gente diz mesmo é: “Que bode saboroso.”

É, se a vida não tá fácil para ninguém, o bode que deixe suas barbas de molho.

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