Por karilayn.areias
Vivem na rua%2C sem calçada fixa%2C mas ela não perde a poseDivulgação

Rio - Os dois bem poderiam ser personagens de ‘Carvão e Giz’, um samba clássico de Luiz Carlos da Vila e Paulo César Feital. “Ele era malandro, ela veio de Paris”. Se encontraram ali pela Praça Mauá, onde “deu-se, estranhamente, a grande dama, num olhar de meretriz, ao mestre-sala das senzalas do país”. “Quando olhar e corpos se tocaram, se fundiu carvão e giz”.

Mas o tempo passou e a Flor-de-Lis, este é seu apelido, não anda muito satisfeita com seu passista nota 10. Já não fazem mais amor nos bancos de jardim. Ele vive nos botequins, cercado de amigos inúteis, vivendo de restos de comida, lambendo literalmente o chão. É popular pra cachorro, também, pudera, vive abanando o rabo para qualquer um na rua. Ela, fiel ao velho amor, vive ao seu lado com cara de tédio, esperando que ele se canse desta vida boêmia e volte a lhe dedicar mais do seu tempo. Ela às vezes rosna — já que é muito ciumenta — arranha, morde, mas não larga o osso. Vivem na rua, sem calçada fixa, mas ela não perde a pose.

Mestre-Sala é o vagabundo clássico. Elegante, sedutor, sempre com um sorriso pronto para agradar a todos. Não é de trair, mas quando começa a se coçar não para mais. Banho? Nem pensar. Vive o presente como se o mundo fosse acabar amanhã, o que bem pode ser verdade. É bunda de fora ou calça de veludo. Ela é uma linda dama cativante, delicada, de olhar meigo, é “chá com torradas e sessão da tarde”, como disse o meu velho pai certa vez em um poema.

Como esses dois se apaixonaram um dia ninguém sabe. Pelo contrário, desde o primeiro momento a grande questão era o porquê desta linda dama ter escolhido, entre mil pretendentes, justamente o maior dos vagabundos. O que ela via de mais naquele flâneur, que perambula pelas ruas da cidade, aparentemente sem compromisso algum. Mas que no fundo traz na alma e no corpo as marcas da história daquelas ruas, da sua própria existência errante. Aliás, seu próprio pai só chama o genro pela alcunha desocupada. “E aí, cadê aquele vagabundo?” “Minha branquinha, quando você vai largar este vagabundo?”

Ela daria de ombros, se ombros tivesse, mas, elegante, sabendo-se em um mato sem cachorro, deixa as coisas como estão. Ele é cachorro, sim, e ela sabe, mas sabe também que ele está por um fio, ou por um cio, de mudar de vida. E aí, quem sabe, eles não construam uma casinha sólida — pode ser ali mesmo pelas bandas da delegacia de polícia e do Cabaret Kalesa — e recolham os quase cem filhotes que botaram no mundo.

Apesar do amor bandido dele e da fidelidade canina dela, Flor-de-Lis e Mestre-Sala têm duas coisas em comum: pulgas e grande medo, o medo supremo, a carrocinha. 

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