Compositor de samba da Mangueira usado no Enem celebra: 'Transformação social através da arte'
Luiz Carlos Máximo ressalta a importância da música a 'serviço da consciência do povo'; letrista Manu da Cuíca também comemora inclusão: 'Extrapola qualquer avenida'
Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo assinam o samba-enredo campeão de 2019, pela Mangueira - Divulgação / Arquivo pessoal
Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo assinam o samba-enredo campeão de 2019, pela MangueiraDivulgação / Arquivo pessoal
A redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) deste ano foi aplicada no último domingo (3), com o tema "Desafios da valorização da herança africana no Brasil". Ela contou com o samba-enredo da Mangueira que venceu o Carnaval de 2019, "História Para Ninar Gente Grande", como um dos seus textos-base. Os compositores Luiz Carlos Máximo, de 63 anos, e sua parceira, Manu da Cuíca, 40, que escreveram a canção, falaram que receberam a informação da inclusão da obra no vestibular com grande satisfação.
Em entrevista ao DIA, Luiz, que também venceu cinco sambas-enredo com a Portela e um pela São Clemente, disse que ficou sabendo da notícia pouco tempo após o início da prova e que Manu lhe contou a novidade. Ele afirmou que quando escreveu a música, há mais de cinco anos, não tinha a dimensão de até onde ela iria, e definiu a sua inserção no exame como uma "alegria imensa".
"Depois do desfile de 2019, este samba já havia sido aplicado em várias provas de colégio. Já tínhamos tido um pouco dessa emoção. Mas agora, foi maior. É o Enem, nacional. Isso é importante, porque é quando uma música, ou obra de arte, vai além do entretenimento, e se coloca como uma questão para a sociedade. Ela não é só mais uma música, que a gente canta e dança. Não que isso não seja importante, mas ela vai além dessa função de prazer. Ela vai a serviço da consciência social e da transformação da sociedade. Essa é a nossa grande alegria", disse.
Luiz Carlos também ressaltou que compositores de samba-enredo não recebem a devida importância e que a notoriedade atingida pela canção, após ser usada no vestibular nacional, pode ajudar a mudar este cenário. "Esse fato deveria fazer com que direções de escola de samba refletissem sobre essa questão da valorização do compositor, o tratamento dado a eles. Além de não recebermos a totalização dos direitos autorais, nós não somos citados em nenhum momento", afirma.
"No desfile, quando anunciam a escola que vai vir, anunciam vários segmentos, que também são importantes, mas não anunciam os compositores. Na televisão, não falam quem são eles. Qual é a razão de existência de uma escola de samba? É o samba. E o compositor não tem essa valorização que deveria ter. Acho até que no passado, já teve mais. Agora, não tem nenhuma. Esse fato deveria ser visto pelas direções e refletido sobre a importância que tem o compositor de samba-enredo para as escolas de samba", argumenta.
O primeiro dia de prova do Enem aconteceu na mesma semana que as condenações de Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, na última quinta-feira (31), acusados pelo assassinato de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes em 2018. Ela é uma das figuras mencionadas no samba-enredo de Máximo, que considerou o vestibular bem atual ao abordar um texto-base com menção à vereadora, e explicou como foi o processo de criação da obra.
"É importante ressaltar que a gente teve algumas resistências na época da disputa deste samba, porque a gente citava a Marielle como se fosse uma questão político-partidária, e não foi. O samba falava dos nossos heróis, e ela estava contextualizada ali. Às vezes, os heróis do nosso povo, na nossa época, não conseguimos perceber. Foi muito importante ter colocado ela no enredo, porque ela também era um ícone da luta do povo brasileiro", falou.
Luiz Carlos enfatizou a importância da arte como uma ferramenta de transformação social e da possibilidade de mostrar as lutas das pessoas. "Eu acredito que nenhuma música, ou obra de arte, faça a mudança de uma sociedade, mas ela pode ajudar. Neste samba especificamente, contamos a história do Brasil não-oficial. Na minha geração, aprendemos a história dos vencedores, não dos vencidos. A história dos donos do poder, e não dos trabalhadores. Este samba resgata a autoestima do povo trabalhador, mostrando suas lutas", concluiu.
'Esse samba, há tantos anos, nos emociona'
Manu da Cuíca assinou a letra do samba-enredo e também recebeu a notícia de sua inclusão no Enem com muita alegria. Ela contou sobre o processo de criação do texto e como a possibilidade de diálogo com pessoas mais novas, que fizeram a prova no último domingo, a enche de orgulho pela produção.
"Foi uma letra que a gente buscou casar com a melodia, trazendo um universo reflexivo, mas também de se apropriar das tantas histórias deste Brasil que a história não conta. A gente buscou que fosse além de uma trilha sonora para um desfile. O samba-enredo precisa cumprir a função de embalar a escola, mas ele não é uma música de fundo, é a razão das escolas existirem. Este, assim como outros que ficaram na história, dão essa dimensão do quanto podemos elaborar um samba-enredo por meio de batucadas, artes, músicas e melodia, tantas questões, dores e lutas atravessadas", disse.
"A gente sabe que o Enem é feito por pessoas de várias idades, mas a maioria são jovens. Poder aproximar esse samba-enredo de uma molecada é muito emocionante. Hoje, se você vai numa quadra, não é exatamente o lugar mais cheio de juventude, embora haja, dependendo da escola. Mas poder dialogar por meio de uma redação e por um tema tão importante, é muito forte", afirmou.
Manu afirmou que o samba-enredo a emociona até hoje, por causa dos relatos contínuos de professores, de que a letra é reconhecida pelos alunos por todo o país.
"Esse samba, há tantos anos, nos emociona. Nesse tempo todo, recebemos vários relatos de professores nas escolas, colégios espalhados pelo Brasil inteiro, falando que usou o enredo em sala de aula e que os alunos reconheciam, em lugares distantes do Rio. Saber disso, que ele está circulando pelas mãos das pessoas mais importantes deste país, que são os professores, isso é muito maneiro. Extrapola qualquer avenida."
"Saber, sobretudo, que ele pode ser um instrumento não apenas de aula, mas de luta, percepção. A gente olha sempre pela história hegemônica, que é contada todo dia, em todos os lugares. Precisamos saber, muitas vezes, da história que a história não conta", argumentou.
Leia a letra de 'História Para Ninar Gente Grande' na íntegra
Mangueira, tira a poeira dos porões Ô, abre alas pros teus heróis de barracões Dos Brasis que se faz um país de Lecis, Jamelões São verde e rosa, as multidões
Brasil, meu nego Deixa eu te contar A história que a história não conta O avesso do mesmo lugar Na luta é que a gente se encontra
Brasil, meu dengo A mangueira chegou Com versos que o livro apagou Desde 1500 Tem mais invasão do que descobrimento Tem sangue retinto pisado Atrás do herói emoldurado Mulheres, tamoios, mulatos Eu quero um país que não está no retrato
Brasil, o teu nome é Dandara E a tua cara é de cariri Não veio do céu Nem das mãos de Isabel A liberdade é um dragão no mar de Aracati
Salve os caboclos de julho Quem foi de aço nos anos de chumbo Brasil, chegou a vez De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês
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