Os juros dispararam ontem no mercado futuro da BM&F. O detonador principal foi o projeto de lei do executivo enviado ontem ao Congresso que altera a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Ao eximir o governo do cumprimento de uma meta de superávit primário este ano e ao usar a totalidade dos gastos com o PAC e da renúncia fiscal via desonerações para abatimento da meta, o projeto sinalizou, no entendimento do pregão, que não há vontade política nem disposição prática de se fazer um ajuste fiscal sério a partir do ano que vem. Sem essa determinação, a área fiscal persistirá gerando inflação e, como não se espera do Banco Central uma severidade monetária capaz de neutralizar o gasto público, cresce o risco de perdas nas aplicações prefixadas de renda fixa. E os investidores passaram a exigir um prêmio maior para assumir a ponta pré, disparando os DIs futuros.
O medo do futuro, traduzido pela exigência de um ganho capaz de cobrir imprevistos inflacionários, ficou patente no fato de que quanto mais longínquo o vencimento do contrato maior foi a alta. Enquanto a taxa para janeiro de 2016 subiu 0,07 ponto, de 12,38% para 12,45%, o contrato para janeiro de 2017 avançou 0,09 ponto, de 12,60% para 12,69%, e o para janeiro de 2021 saltou 0,13 ponto, para 12,57%. Os contratos só não fecharam nas máximas do dia — de 12,75% para janeiro de 2017 e de 12,66% para o janeiro de 2021 — porque a alta dos DIs não teve a chancela do dólar. O câmbio foi muito afetado pelo feriado americano do Dia do Veterano, que afastou os estrangeiros dos mercados de derivativos cambiais da BM&F, um dos principais formadores do preço à vista. A moeda fechou cotada a R$ 2,5577, em valorização de apenas 0,33%.
A reação do DI futuro ao projeto de lei foi, na verdade, exagerada. Ele se refere ao passado, e nada diz sobre o futuro. Segundo a LDO atualmente em vigor, o governo poderia abater da meta até R$ 67 bilhões do volume total investido no PAC e na economia em geral por meio das desonerações. Pelo novo projeto, não há mais esse corte. Todo o dispêndio poderá ser descontado. De janeiro até setembro, o gasto com o PAC foi de R$ 47,2 bilhões e o montante das desonerações, de R$ 75,7 bilhões. Ou seja, o total alcança R$ 122,9 bilhões, e ainda falta contabilizar o dispêndio relativo ao último trimestre do ano. Mantida a média mensal do ano, o volume total pode chegar a R$ 164 bilhões. A meta cheia inscrita na LDO é de R$ 167,4 bilhões, equivalente a 3% do PIB. Ou seja, o governo não fez nenhuma economia para pagamento dos juros da dívida, mas o que foi gasto com o PAC e as desonerações servirão para fechar a conta.
Sem o projeto, provavelmente o governo encerraria o ano com um déficit primário, situação politicamente desconfortável para quem iniciou 2014 prometendo um superávit equivalente a 1,9% do PIB. O projeto é uma maneira burocrática de se evitar a configuração estatística do déficit, mas não muda em nada a situação real, o que já foi feito e realizado na economia. O novo projeto não amplia despesas, apenas consolida as que já foram feitas. O que está de fato em jogo é o que será feito em 2015. A respeito disso, a decisão ainda será tomada pela presidente Dilma Rousseff: de fazer um ajuste rigoroso, capaz de retornar um superávit de 3% do PIB em dois anos, ou correções menos acentuadas, estabilizando uma meta entre 1,5% e 2% até o final do seu segundo mandato. O mercado descarta completamente a hipótese de o governo não fazer nada, ou de dobrar a aposta, aumentando as desonerações tributárias a setores produtivos e expandindo os gastos sociais.
O mercado não gostou das alterações propostas na LDO porque, com elas, o governo não assume os seus erros. Para que alguém aceite um tratamento doloroso será preciso antes conscientizar-se da gravidade da doença. Os doutores do mercado nem sabem da real extensão da enfermidade porque o paciente faz uso de medicina alternativa composta por “pedaladas” — postergação de despesas — e contabilidade criativa. E agora o fim das limitações legais ao abatimento. O paciente parece não querer a cura, mas a convivência com a doença. Os analistas leram com particular desassossego um frase contida na nota divulgada pelo Ministério do Planejamento para justificar o projeto de lei, reveladora da disposição do governo de não fazer mudanças profundas na política econômica. É a seguinte: "O Executivo está comprometido a realizar o máximo superávit primário e ao mesmo tempo garantir a execução de investimentos prioritários e a manutenção dos incentivos à economia nacional, por meio de desonerações de tributos".
Ao jogar os juros nas alturas, o pregão de DI futuro não reconheceu que houve, com o projeto de lei, um avanço nas práticas fiscais em relação aos procedimentos anteriores. Enquanto o projeto é claro e se submeterá à apreciação do Congresso, que tem a opção de não aprová-lo, até então o governo vinha recorrendo a manobras inteiramente obscuras para gerar superávits fictícios, como a protelação de pagamentos e os arranjos florais do Tesouro. O figurino fiscal, que o mercado já via nu há muito tempo, foi oficialmente despido, pois dele se retirou o manto da contabilidade criativa: não há meta em 2014. Não quer dizer que não haverá em 2015.
O projeto não é uma grande novidade ao mercado. Ele intuía que algo ia ser feito para contornar legalmente o não cumprimento da meta de superávit primário incorporada à lei. Mas ele alimentou o cenário consensual já traçado antes do seu advento segundo o qual as mudanças que serão introduzidas na política econômica no Dilma 2.0 serão mínimas, suficientes apenas para não deteriorar ainda mais a economia. Ou seja, no fundo o mercado não acredita que a presidente irá conduzir Henrique Meirelles ao Ministério da Fazenda. E, se o fizer, não lhe dará plenos poderes. “Nossas projeções não incorporam ajustes e reformas que permitam uma retomada vigorosa do crescimento na economia”, escreveu Ilan Goldfajn, economista-chefe do Itaú em relatório distribuído ontem a clientes.
O humor do mercado já estava azedado antes de divulgadas as mexidas na LDO. Recebeu antes com preocupação as informações de que o presidente do Banco Central. Alexandre Tombini, havia desmarcado compromissos em Londres para incorporar-se à comitiva presidencial em viagem à cúpula do G-20, atendendo a convocação urgente de Dilma. Tal gesto não foi interpretado como um simples sinal de prestígio pessoal de Tombini junto à presidente. Foi indício de que ele foi reintroduzido na corrida sucessória à Fazenda, cujos maiores favoritos até então eram Meirelles e Nelson Barbosa. O fato é que as instituições não gostam de Tombini. A sua gestão é considerada afinada demais com as posições do Planalto. Informalmente, sem consignar a sua opinião em relatórios oficiais, os analistas são impiedosos: menos qualificado tecnicamente que Barbosa, um economista que, embora heterodoxo, impõe respeito aos analistas por sua capacidade de enxergar os problemas e propor soluções inovadoras e aceitáveis, o presidente do BC seria na Fazenda tão fiel e simpático às teses presidenciais quanto foi Mantega.