Celso Amâncio acaba de voltar de um período sabático de um ano e meio, quando rodou o Brasil e outros países da América Latina em seu “motorhome” — espécie de quitinete sobre quatro rodas. Diretor de crédito das Casas Bahia de 1976 a 2005, quando criou o conceito da “inadimplência saudável”, também foi presidente do Banco Carrefour de 2006 a 2011. Hoje, o especialista em crédito para a classe C preside a Agência Consumidor Popular e dá consultoria a instituições financeiras e conselhos de administração de grandes empresas. Amâncio revela preocupação com o nível de endividamento da população, com a banalização do crédito para a população de baixa renda e com a inadimplência oculta que, segundo ele, pode explodir se a situação da economia piorar. Leia a seguir os principais trechos da entrevista na qual expôs sua visão da atual situação do crédito no Brasil.
Como o senhor vê a situação atual do crédito ao consumo no Brasil?
Como uma bomba-relógio. Quero dizer que não sou um pessimista, ao contrário. Mas a explosão de meios de pagamento à disposição dos clientes de baixa renda — hoje quase todo mundo tem quatro ou cinco cartões na carteira — e a concessão indiscriminada de crédito gerou uma situação insustentável. Tem muita inadimplência oculta — a pessoa consome o limite de um cartão, passa para o outro, para o outro, para o outro... depois toma crédito pessoal, consignado do avô... e acaba sem ter como pagar. É uma inadimplência que ninguém vê, não aparece nas estatísticas. Essas mesmas pessoas estão deixando de pagar impostos, como IPVA e IPTU, e isso também não aparece nas estatísticas. Se a economia parar de girar e o desemprego começar a crescer, as pessoas não vão ter mais como rolar o que devem. Temo por uma bola de neve, um movimento de “desobediência”, de moratória...
Mas a inadimplência já esteve pior há dois anos. No ano passado, melhorou. Porque o senhor está preocupado agora?
Melhorou, mas em 2014 já voltou a piorar. Isso é cíclico. É só conversar com as pessoas, e isso foi o que eu mais fiz nesses meses que fiquei viajando pelo Brasil no meu “ano sabático”. E tem outras evidências. Por exemplo: sou sócio do meu filho em uma empresa de recuperação de crédito, a Senarc, em Caetano do Sul, região do ABC, em São Paulo. Até dois anos atrás, 90% das pessoas que faziam acordos para pagar suas dívidas cumpriam até o final. Agora, 80% não cumpre. Nos últimos oito anos, o consumidor popular foi bombardeado com oferta de crédito, sem preocupação com educação financeira. Agora a sua capacidade de pagamento se esgotou, o que não se esgotou ainda foram os meios de pagamento. Eles já escolhem o que pagar. Primeiro vem aluguel, depois supermercado, depois o resto. Muita coisa fica para trás. Essa inadimplência oculta é um problema.
O que mudou em relação ao tempo em que o senhor dirigia as Casas Bahia?
Estive à frente da expansão da rede de 13 para 500 lojas; e 90% dessa expansão foi garantida, nesse período, pela concessão do crédito e pelo que chamo de “fiança emocional”. O “freguês” confiava na loja, honrava o crédito, pagava os carnês. O crédito era bem concedido, com conhecimento do cliente. Tínhamos 7,7 milhões de compradores dos quais 77% estava presente nas nossas lojas pessoalmente todos os meses. Se alguém entra na loja para comprar um fogão de seis bocas, mas sua renda não comporta um financiamento do valor de um fogão de seis bocas, não negamos o crédito - vendemos um fogão de quatro bocas para ele.
E até 2005 não tinha inadimplência?
Tinha, mas como o crédito era bem concedido, a inadimplência era sustentável, saudável. O cliente podia atrasar o pagamento da prestação do carnê, mas sempre pagava. E essa é uma inadimplência que dá lucro, pois juros e multas cobradas são altas. A chave é que o atraso não se convertia em perda. Em 2000 o endividamento das famílias estava em 25% agora esta em 65%.
E porque isso mudou?
Em primeiro lugar, porque o mercado cresceu muito, virou um negócio de escala. Tinha banco e financeira dando crédito na rua. As empresas compravam cadastros. Hoje dificilmente um varejo tem sua carteira própria de crédito; tem acordo com bancos e financeiras, então o lucro fica com eles, o cliente é deles. E muitas instituições financeiras também repassam carteiras de clientes a outras. Os clientes viraram papel. E os bancos e financeiras que embarcaram na onda da massificação da oferta de crédito a essas pessoas não sabem dar crédito para elas. Se apoiam na escala, na tecnologia, em sistemas de “score” (pontuação). Mas não retém nem entendem o cliente da classe C. O uso do crédito mudou muito. Hoje se vende a prazo uma fritadeira a ar de R$ 1,2 mil, para fazer algo que uma frigideira de R$ 20 também faz, fritar. Antes a classe C tomava crédito como um investimento, para melhorar de vida, quando precisava de uma geladeira nova, ou de reformar a casa. O crédito agora foi banalizado. As pessoas compram até comida a prazo.
Mas é assim em países desenvolvidos também, as pessoas vivem alavancadas, usam muito cartão de crédito...
Mas aqui isso tudo é muito novo, por isso digo que é preciso investir em educação financeira. A cultura é diferente. Além disso, o brasileiro enfrenta uma série de custos fixos muito altos, de impostos a gasolina, que mesmo subsidiada pelo governo é uma das mais caras do mundo... sem falar em gastos com saúde, remédios, planos. É diferente. O uso do cartão no Brasil cresceu muito sem que o terreno para esse crescimento tivesse sido preparado. Não que a classe C não mereça acesso ao crédito. Ou que a tecnologia não tenha seu valor. Sim, ela é necessária. Mas é preciso associá-la à cultura do “freguês”, do olho no olho. Não pode usar a tecnologia e jogar tudo junto no liquidificador. Crédito é uma ciência e uma arte.