O foco da minha viagem era Gaza, onde fiquei oito dias. Cruzei a fronteira e cheguei no enclave palestino com uma equipe do Médicos Sem Fronteiras que conhecera em Jerusalém. A entrada parece um pequeno aeroporto com entrada envidraçada (com várias placas de vidro quebradas pelo abalo dos bombardeios) e apenas dois guichês funcionando. A sensação é a de entrar em um presídio com detectores de metais e várias portas giratórias. No final, uma porta automática que lembra a de um elevador de carga. Depois dela, finalmente a Faixa de Gaza.
Cerca de 50 mil casas e edifícios públicos sofreram danos graves ou foram totalmente destruídos pelos bombardeios israelenses que provocaram o deslocamento de mais de 100 mil palestinos.
Em novembro de 1998 os moradores de Gaza tinham razões para ficarem esperançosos: o primeiro aeroporto, batizado em homenagem ao líder Yasser Arafat, havia sido inaugurado. Desenhado por arquitetos marroquinos, o aeroporto tinha uma cúpula dourada no salão VIP. Mas ele sobreviveu apenas dois anos. Foi destruído pelos conflitos com Israel. Hoje, as pistas onde deveriam desfilar aviões, servem de passagem para beduínos com suas ovelhas.
Em outubro, a comunidade internacional prometeu entregar US$ 5,4 bilhões para reconstruir o enclave palestino. Em Khanyunis, sul de Gaza, além de lares destruídos, vi agricultores trabalhando na colheita, principalmente de azeitona. Os 1,8 milhão de habitantes de Gaza produzem apenas uma pequena fração do que precisam. Dependem de bens importados que só podem chegar ao seu território de duas maneiras oficiais: pela fronteira com o Egito, em Rafah (Sul de Gaza) e pelas passagens com Israel.
Foi neste cenário que os túneis clandestinos criados e controlados pelo Hamas para contrabandear armamentos passaram a ser importantes passagens também para combustível, animais, carros e todo tipo de produto.
Os primeiros caminhões carregando o que Gaza precisa mais agora _ material de construção _ começaram a chegar somente no dia 14 de outubro, um mês e meio após o fim do conflito. O primeiro carregamento tinha 75 caminhões. O segundo carregamento, com 28 caminhões, desembarcou na última terça-feira (25). Mas as obras ainda não começaram e tudo piorou com as chuvas torrenciais dos últimos dias que obrigaram as autoridades a declarar estado de emergência. O que chegou até agora é muito pouco, reclamam autoridades locais. Economistas de Gaza calculam que seriam necessários 400 caminhões por dia pelos próximos seis meses.
Segundo o diretor de operações da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA, na sigla em inglês) em Gaza, Robert Tumer, não existe um governo palestino efetivo ou unido na Faixa de Gaza, e a menos que se obtenha estabilidade rapidamente, outro conflito vai ocorrer no território. As estimativas mais recentes indicam que a reconstrução levará de dois a três anos. E a extensão dos danos e do número de desabrigados da última guerra é pior do que se pensava."Se não houver estabilidade política, se não tivermos um governo nacional palestino, se não tivermos ao menos um alívio no bloqueio, haverá outra guerra", afirma Tumer.
Quem teve a residência totalmente destruída foi para casas de parentes ou está abrigado nas escolas da ONU. Chamou minha atenção o fato de muitas famílias voltarem para suas casas, ainda que parcialmente destruídas. Elas vivem o cotidiano em meio aos escombros quase com naturalidade. Crianças jogam bola, brincam, correm, convivem com a tragédia da guerra que é o dia-a-dia delas.
A guerra também adiou planos. Adiou a colheita nas plantações de oliveira, adiou casamentos. Até os banhos de mar, o lazer, ficaram para o verão de 2015.
Hamdan Hamada mostra o depósito de sua fábrica de molhos, totalmente destruído e queimado. Ele espera ansioso a chegada dos materiais de construção para poder reativar sua fábrica, que tem 60 funcionários, hoje de braços cruzados, sem terem o que fazer. “Mas não demiti ninguém”, disse ele, que também importa produtos, inclusive café do Brasil.
As pessoas que me ajudaram, com quem eu trabalhei (tradutor , guia e motorista) , fizeram questão da minha presença em jantares e almoços nas casas deles e de amigos. Há uma hospitalidade natural por eu ser brasileiro e por representar o mundo fora das fronteiras de Gaza. É um lugar pobre, mas não miserável. Não vi morador nem menino de rua. A taxa de alfabetização é de 97% e a consciência política é latente.
Eu conversei com um militante do Hamas que disse que a população de Gaza aplaudiu a atitude da presidenta Dilma Rousseff de condenar os ataques israelenses. O que me surpreendeu não foi, claro, eles ficarem felizes com a condenação, e sim o fato de acompanharem a política no Ocidente, assuntos sobre a guerra e as eleições no Brasil.
Aproveitei para perguntar sobre o perfil do militante do Hamas. Para entrar no movimento, o jovem tem que estudar de dois a cinco anos, para depois iniciar, ou não, sua missão na organização. Muitos são médicos, professores, engenheiros de formação.
Estrangeiros e palestinos, homens e mulheres, formam uma equipe incansável. A única orientação que me deram foi a de tomar cuidado antes de fotografar mulheres, por razões culturais, e homens jovens, porque poderiam ser pessoas procuradas por Israel.
Além dos feridos pela guerra e por acidentes de trânsito, vi muitas crianças queimadas por água fervendo, devido ao hábito de tomar chá e café. Como todos os palestinos que moram em Gaza, os médicos locais não podem sair dali. Só lhes resta aguardar o próximo ataque.
O bombardeio aconteceu no verão e interrompeu o lazer à beira-mar. A água é limpa, mas a areia é suja. Um grupo de pescadores fazia arrastão. Seus barcos só podem se distanciar até seis milhas náuticas do litoral. Se passarem, são baleados, o que acontece volta e meia, inclusive depois do cessar fogo.
As opções profissionais são escassas nessa economia em frangalhos: 40% da população está desempregada. Entre os jovens é mais alarmante ainda: 63%. Cerca de 80% da população conta com a ajuda humanitária para sobreviver.
Gaza não tem sinal de trânsito, cinema, teatro ou bebida alcoólica. Drogas, nem pensar. Também não vi áreas de lazer frequentadas por homens e mulheres solteiras.