Por monica.lima

Faz tempo que as polícias municipais norte-americanas embarcaram em uma metamorfose perigosa que aos poucos transformou a força, antes encarregada de cuidar da população, em um exército que ocupa as ruas. Uma tropa que vigia o comportamento dos cidadãos e fica de olho, especialmente, nas minorias. É impossível para uma mulher branca, como eu, relatar exatamente o que sente a população negra dos Estados Unidos que, em sua maioria, se sente o outro, o estranho, o de fora, o que nunca vai fazer parte.

A eleição de um presidente afro-americano não alterou em absolutamente nada essa equação. Talvez tenha até radicalizado o sentimento racista dos que sempre acharam necessário manter a minoria negra sob controle. E quando casos como o de Mike Brown — o rapaz negro de 18 anos, morto com seis tiros disparados por um policial branco em Ferguson, no Missouri, aparentemente ajoelhado no chão e com as mãos para o alto — acontecem, toda essa tensão racial que nunca foi de fato resolvida vem à tona novamente.

O pior é que hoje a força policial do país não é mais aquela que enfrentou o movimento de direitos civis nos anos 60. Ela evoluiu e muito no sentido de se preparar ainda melhor para uma guerra interna. E a ainda maioria branca (somando latinos e negros, não será maioria por muito tempo) que não se iluda. Ela também é e será cada vez mais alvo dessa polícia militarizada caso se revolte contra o aumento do desemprego e a perda crescente de poder aquisitivo.

A militarização das polícias municipais começou ainda no governo Nixon, que declarou guerra às drogas. A tensão entre policiais brancos de Los Angeles e a população negra da cidade ficou evidente em 1965, durante seis dias de enfrentamentos que terminaram com 34 mortos. Tudo começou com o que a população considerou tratamento agressivo demais com uma mãe e dois filhos. Ali sugiram as primeiras equipes da SWAT. Com Ronald Reagan, nos anos 80, disparou o número de cidadãos presos ano a ano e o tratamento “preferencial” dado pela polícia às minorias. Mas o coroamento desse processo veio nos anos 1990 com o programa 1208, depois atualizado para 1033 que permitiu ao Pentágono transferir equipamentos bélicos para as cidades que requisitarem. Não é preciso dizer que depois do 11 de setembro, essa transferência ganhou um impulso enorme. E hoje está a cargo do Departamento de Defesa e do Departamento de Segurança Interna que, sozinho, vai transferir, até o fim do ano, US$ 1,6 bilhão em material bélico para as prefeituras.

O que se viu em Ferguson foi o resultado desse processo. Quando a população foi para a rua protestar a morte de Mike Brown, encontrou um batalhão que não tinha tática de controle da massa. Eram policiais armados até os dentes, enfileirados, com rifles apontados para o peito dos manifestantes.

Tom Nolan trabalhou no departamento de polícia de Boston durante 27 anos. Hoje é professor de Justiça Criminal da Universidade de Plattsburgh, no estado de Nova York. Em seu blog, ele foi direto ao ponto: “Não tenha dúvida, a polícia dos Estados Unidos está militarizada e em muitas comunidades, particularmente as de maioria negra, a mensagem tem sido reforçada claramente: ‘você é o inimigo’”.

No último sábado, Nicholas Heyward Sr. reuniu amigos e ativistas em um parquinho do Brooklyn, como faz há vinte anos, para lembrar a morte do filho. O menino de 13 anos estava brincando com os colegas, com uma arma de brinquedo, no conjunto habitacional onde morava, quando se deparou com um policial. O fim do menino Nicholas, há duas décadas, foi o mesmo de Mike Brown agora. O policial que matou o pequeno Nicholas nunca foi preso ou repreendido. O pai não desistiu e briga até hoje para puni-lo. Mas não é exatamente um sonhador. Em entrevista ao site Truthout, ele disse que “as coisas pioraram muito de lá para cá em matéria de violência policial e prisão em massa. As pessoas precisam ligar essas duas coisas. Essa violência é praticada contra as comunidades de cor. A polícia ganhou poder demais. A história dos Estados Unidos nos mostra que negros e mulatos têm sido alvo da violência mas ainda assim nos dizem que nós é que somos violentos”.

O conflito racial não explica todo o quadro da militarização do país. A guerra contra o terror criou o ambiente necessário para a adoção doméstica das práticas e das ferramentas até então reservadas ao combate em território alheio. Armas cada vez mais sofisticadas, escudos, capacetes, coletes, tudo isso passou a fazer parte do cenário diário das ruas norte-americanas. Drones já sobrevoam algumas cidades permitindo à polícia ficar de olho na população de forma ainda mais incisiva e permanente. Os moradores de Seattle barram a brincadeira. Os drones foram parar na Califórnia e agora são eles que estão chiando... Não estão gostando de se ver como personagens desse filme de terror.

Existem mais de 300 milhões de armas nas mãos da população civil dos Estados Unidos. Não há dúvida de que os departamentos municipais de polícia absorveram o discurso, as armas e o comportamento da chamada Guerra contra o Terror. Com a crise econômica, aumentou o desemprego e os postos de trabalho que surgiram são, em sua maioria, ruins, de salários muito baixos. O empobrecimento da população é evidente. Os ingredientes são explosivos. Reverter esse quadro vai exigir muitos protestos e muita organização da sociedade civil. Não vejo essa organização ganhar corpo. Ela parecia respirar novos ares com o surgimento do movimento Occupy, em 2011, que literalmente acampou nas ruas do país. Mas foi firmemente reprimido, infiltrado e desmobilizado. Os estudantes de Ferguson prometem uma greve para hoje e apresentaram uma lista de reivindicações ao governo. Quem sabe?

Mas a mesma população que, por ignorância, descaso ou medo apoiou as invasões do Iraque, do Afeganistão e parece assentir agora para os novos bombardeios no Iraque e na Síria contra o grupo Estado Islâmico, queira ou não vai provar, cada vez mais, desta versão do próprio remédio amargo.

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