Por monica.lima

“O sonho da razão produz monstros". Esse é o título de uma obra do pintor espanhol Francisco Goya. Nela, um homem dorme repousando a cabeça sobre o braço apoiado em uma mesa enquanto seres não identificados se aproximam, voando, ameaçadores. A palavra sueño, em espanhol, pode ser traduzida como sonho ou como sono. No caso, sono faz mais sentido. Quando a razão cochila, dorme, desliga, os monstros aparecem. O quadro de Goya veio à tona no artigo de um poeta mexicano a respeito da crise que o país enfrenta.

Sob o título "Basta! O México está a ponto de explodir", Homero Aridjis diz que se é verdade que o sonho da razão produz monstros, então a razão, no México, está em estado de coma. A razão não tem como explicar o que se passou com 43 alunos da escola normal de Iguala, no Estado de Guerrero, no dia 26 de setembro. Ela também não explica porque os mais recentes desaparecidos do continente não ocuparam, na imprensa americana, um décimo do espaço dedicado às acusações de abuso sexual contra o ator Bill Cosby, ou ao sequestro das duzentas meninas da Nigéria levadas pelos ativistas do grupo Boko Haram.

A razão também tira longos cochilos ao norte da fronteira. Caso contrário, como explicar a falta de interesse pelas manifestações gigantescas que estão acontecendo no país vizinho, de onde vieram quase 50% dos imigrantes que hoje vivem ilegalmente nos Estados Unidos? Como compreender a falta de preocupação e empatia com o sofrimento de mais de quarenta famílias que viram seus filhos, todos na faixa dos 18 aos 22 anos, sumirem de uma hora para outra. “Eles se foram com vida. Os queremos de volta vivos”, gritam os pais, irmãos, tios e colegas em todos os protestos.

A escola normal na zona rural de Iguala não é uma escola qualquer. E a briga dos estudantes, ali, não é uma batalha isolada. Eles enfrentam um projeto de governo que tenta desmontar o que ainda resta da educação pública no México e, mais especificamente, do projeto, que nasceu com a revolução mexicana, para oferecer uma rota de fuga da pobreza para trabalhadores rurais e comunidades indígenas. Das 46 escolas criadas no passado, restam apenas 15 hoje. Na última reforma anunciada pelo governo, essas 15 vão passar a cobrar taxas que nunca existiram e que, segundo os alunos, tornarão a educação totalmente inacessível para os mais pobres. Justamente o público alvo do projeto original.

Por isso, os normalistas de Iguala se organizaram e começaram a brigar contra o projeto do governo do presidente Peña Nieto. No dia 26 de setembro, os estudantes participaram de um protesto que tinha como objetivo levantar dinheiro para mandar uma delegação à Cidade do México, onde representariam a escola em um protesto anual contra o massacre de Tlatelolco, no qual cerca de 300 estudantes foram mortos, em 1968. Um crime pelo qual até hoje ninguém foi julgado.

A mulher do prefeito de Iguala, que pretendia se candidatar para suceder o marido no cargo, tinha um discurso marcado para o mesmo dia e não queria aborrecimento. Aparentemente, o prefeito mandou a polícia calar os estudantes. No confronto com os manifestantes, seis pessoas morreram. Mas a polícia ainda prendeu 43 alunos que nunca mais apareceram. Segundo depoimento de integrantes de uma gangue de narcotraficantes, os jovens teriam sido entregues à gangue, que se encarregou de matar, esquartejar e queimar os corpos. No Estado de Guerrero, não foi a primeira vez que a polícia matou normalistas. Em 2011, dois estudantes foram mortos durante uma manifestação contra a redução das verbas para a educação.

O governo federal levou 10 dias para abrir um inquérito. O presidente nunca visitou a cidade e passou vários dias no exterior enquanto o país explodia em protestos. O presidente Peña Nieto só se encontrou com os parentes dos alunos um mês depois do desaparecimento dos jovens.

Com as investigações em andamento, valas comuns foram descobertas. Corpos desenterrados. Mas nenhum deles, até agora, é de um dos 43 estudantes desaparecidos. São outros mortos, não identificados, de uma guerra que se convencionou chamar de guerra contra as drogas. Uma mistura de falta de perspectiva econômica com tráfico, corrupção e política na qual ninguém mais sabe onde um problema começa e o outro acaba. Uma guerra que começou em 2006 e contabiliza mais de 20 mil desaparecidos. O número total de mortos é de cerca de 100 mil pessoas. A credibilidade e o mandato de Peña Nieto estão em cheque.

A popularidade do presidente está desabando. Os manifestantes, em número cada vez maior, pedem a renúncia de Peña Nieto, que tenta implementar um programa econômico rechaçado pela maioria da população. Especialmente a lei que abrirá o setor de energia do México às empresas estrangeiras. A partir do ano que vem, campos de petróleo e gás serão abertos à exploração estrangeria pela primeira vez na história do país. Será o fim do monopólio da estatal Pemex. Uma iniciativa que, claro, conta com todo o apoio no exterior. Especialmente aqui nos Estados Unidos. Porém, mais de 60% dos mexicanos são contra.

Nos anos 60 e 70, milhares de mexicanos foram mortos porque desafiaram as políticas do governo. A “guerra suja” mexicana, a exemplo de outras tantas que se repetiram na América Latina, deixou milhares de crimes sem resposta e culminou com o massacre de Tlatelolco. Ela foi substituída pela violência da guerra contra as drogas, na qual a polícia militarizada e equipada — em boa parte com a ajuda financeira dos Estados Unidos, através do chamado Plano Mérida — combate os cartéis de traficantes, que só se multiplicaram nas duas últimas décadas. A população, no fogo cruzado, está exausta da violência, de viver com medo dos traficantes, da polícia e do exército e tem muito pouco a perder a essa altura do campeonato.

Uma panela de pressão como essa na Ucrânia, na Turquia, na Venezuela inundaria o noticiário americano. Mas o que se passa no México parece não sensibilizar tanto assim a imprensa por aqui. Curioso...

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