Por douglas.nunes
O lançamento do filme não poderia vir em melhor hora. É uma dessas felizes coincidências que volta e meia promovem o casamento perfeito entre arte e realidade. “Selma” estreou no dia 24 e, apesar de ser noite de natal, quando as ruas de muitas cidades ficam vazias já que quase todo mundo se reúne com os parentes, aqui em Nova York as ruas, e a sala de cinema, estavam lotadas. O filme da diretora Ava DuVernay é desses que a plateia aplaude antes mesmo das luzes se acenderem. Ele reconta a história das três passeatas decisivas, entre as cidades de Selma e Montgomery, no Alabama, que selaram a adoção da lei para garantir os direitos dos eleitores afro-americanos dos Estados Unidos.
Foi uma briga e tanto. O voto negro foi estabelecido em 1875. Quase cem anos depois, ainda era difícil exercer esse direito. Na época, os estados do sul adotavam uma série de manobras para rejeitar o registro dos eleitores negros. Uma delas era exigir que o eleitor soubesse ler e escrever, conhecesse a fundo a constituição do país e por aí vai. O filme todo gira em torno da mobilização, em março de 1965, no Alabama. O movimento de direitos civis, liderado pelo reverendo Martin Luther King, encontrou em Selma o município ideal para chamar a atenção do país. Distando 75 km de Montgomery, capital do Alabama, Selma era um exemplo típico de segregação e desrespeito aos direitos dos afro-americanos. No caminho entre as duas cidades, o condado de Lowndes era recordista. Nele nenhum eleitor negro conseguira se registrar para votar em 60 anos.
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As caminhadas-protesto entre as duas cidades são históricas. A primeira ficou conhecida como o “Domingo Sangrento”. Martin Luther King não estava presente. Quando os manifestantes tentaram cruzar a ponte Edmund Pettus, policiais e milicianos avançaram armados com cassetetes, alguns revestidos com arame farpado. Foi um massacre que, noticiado em todo o país, provocou uma enxurrada de adesões. Brancos e negros de diversos estados, de diversas organizações civis e religiosas, se juntaram aos manifestantes para os protestos seguintes. Foi tanta pressão que o presidente Lyndon Johnson conseguiu arrancar do Congresso a aprovação da Lei do Direito do Voto proibindo a discriminação na hora de registrar eleitores e na hora de organizar as eleições também.
Foi com muito sangue que os afro-americanos garantiram a aprovação dessa lei minuciosa, que, entre outras coisas, proibiu os estados do sul, onde a segregação persistia, de mudarem qualquer regra eleitoral sem a aprovação de uma comissão federal. Em março deste 2015 que se aproxima, a chamada caminhada de Selma completa 50 anos. Historicamente, é pouco tempo. E dá o que pensar... Hoje, os índices de participação dos afro-americanos nas eleições em todos os níveis são baixíssimos. Pouca gente exerce esse direito garantido na marra. Em média, menos de um terço dos eleitores negros que podem votar se dão ao trabalho de depositar o voto na urna.
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Como quase metade do eleitorado branco, acho que eles não se sentem representados por democratas ou republicanos. Simplesmente não acreditam no processo eleitoral como meio de conquistar mudanças significativas que criem melhores empregos e tornem as escolas públicas dos bairros pobres e de maioria negra tão boas quanto as dos bairros brancos e afluentes. Eleger um presidente afro-americano não provocou mudança alguma nesse quadro. O desinteresse pela democracia continua o mesmo. E reforça a tese dos professores de ciências políticas Martin Gilens, da Universidade Princeton, e Benjamin Page, da Universidade Northwestern sobre o fim da democracia americana. Eles provocaram muita discussão em abril passado quando publicaram o trabalho sobre a transformação dos Estados Unidos em uma oligarquia. Eles afirmam que os interesses da elite econômica têm muito mais impacto na adoção de políticas nacionais do que as preferências do cidadão comum. Daí, adeus democracia.
As minorias estão lutando, agora, pelo respeito à vida. As mortes recentes de afro-americanos desarmados nas mãos de policiais brancos que sequer foram a julgamento pelos homicídios levaram milhares às ruas de várias cidades. Aqui em Nova York o incidente foi ainda mais longe. O policial deu uma gravata no pescoço de Eric Garner, um golpe que é proibido pelas normas da própria polícia. Ainda assim, a corporação ficou do lado do policial. Se recusa a admitir que ele errou. O prefeito Bill de Blasio, casado com uma afro-americana, tem um filho adolescente. Negro. E admitiu em público ter conversado com o rapaz várias vezes a respeito dos cuidados que ele deve tomar se for parado na rua pela polícia. Esse é um medo que eu não conheço. Uma conversa que nunca precisei ter com os meus filhos. Mas a realidade dos pais negros do país é outra.
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De Blasio tocou em uma ferida aberta e está pagando caro por isso. No sábado, durante o enterro de um policial morto em serviço, milhares de colegas do agente deram as costas ao prefeito enquanto ele discursava no funeral. Foi uma cena forte, preocupante. Por vários motivos. Mas é estarrecedor imaginar que a imagem do colega dando uma gravata em um cidadão desarmado até ele morrer asfixiado não seja suficiente para que eles admitam que houve um erro. E é também sinal de que o corporativismo e o preconceito estão muito acima da justiça e do sentimento básico de humanidade. Os policiais que se comoveram com o sofrimento da viúva e dos filhos do colega morto não demonstram a mesma preocupação com o que está passando a família da vítima do excesso de força.
“Selma” mostra o que foi preciso para garantir o direito do voto, básico em qualquer democracia. Mas ele não foi suficiente para varrer o preconceito, como deixam claros, hoje, os gritos que vêm das ruas.
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