Por monica.lima

No teatro político da semana que passou, os atores eram todos velhos conhecidos e o texto uma fraude daquelas à qual a repetição constante acaba conferindo um verniz de veracidade. O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, ocupou a tribuna do Congresso dos Estados Unidos mais uma vez, para mobilizar a opinião pública americana contra a política externa do presidente Barack Obama e para, talvez de quebra, ganhar alguns pontos junto ao eleitorado israelense que vai às urnas na terça-feira da semana que vem.

Netanyahu foi a Washington sem um convite oficial da Casa Branca. Por isso, não foi recebido pelo presidente, e mais de 50 deputados e senadores se recusaram a assistir seu discurso. Deixaram as cadeiras vazias no Congresso. Porém, outros mais de 480 estavam lá para aplaudir de pé. Muitos deles matando dois coelhos com uma cajadada só: ao mesmo tempo em que agradeceram todas as contribuições de campanha fornecidas pelo lobby pró-Israel, aproveitaram para dar uma alfinetada em Obama.

Netanyahu, o foco da pantomima, fez o papel de arauto do fim do mundo. Repetiu o discurso que quase sempre garante o apoio que os conservadores israelenses buscam: o Estado de Israel está sob ameaça de destruição, o povo judeu é vítima novamente e pode ser varrido do planeta. Uma amostra do que ele disse e de como arrancou aplausos de deputados e senadores americanos:

“Nos nossos 4.000 anos de história, muitos tentaram repetidamente destruir o povo judeu. Hoje o povo judeu enfrenta outra tentativa de mais um potentado persa de nos destruir. O Líder Supremo do Irã, Aiatolá Khameney, cospe o ódio antigo, o ódio do antissemitismo, com nova tecnologia. Ele tuita que Israel deve ser aniquilado”.

Netanyahu aproveitou para ir mais longe e recuperar, como sempre convém, o trauma do Holocausto. “Mas o regime iraniano não é apenas um problema judeu, assim como o regime nazista não foi um problema apenas dos judeus. O regime do Irã representa uma grave ameaça não apenas para Israel, mas para a paz do mundo inteiro”.

Aqui vale a pausa para analisar essa peça de retórica recorrente de que a destruição do Estado de Israel está logo ali, na esquina, o que justifica ações militares, invasões, ocupações e até mesmo o uso de fósforo branco contra civis. O livro do professor de Direito Internacional da Universidade de Ohio John Quingley voltou a ser motivo de debate esta semana, por conta do discurso de Netanyahu. Em “The Six Day War and Israeli Defense” o professor analisa documentos dos governos dos Estados Unidos, da França, da Grã-Bretanha e da então União Soviética mantidos sob sigilo até poucos anos para desmontar a versão que se tornou oficial de que Israel atacou Egito, Síria e Jordânia na Guerra dos Seis Dias, em 1967, preventivamente, porque ia ser atacada.

Depois de analisar os documentos, o professor Quingley concluiu que a superioridade militar de Israel era indiscutível, mesmo somando-se as forças de todos os vizinhos árabes mobilizadas na fronteira. E mais: Israel não esperava um ataque, mas viu na situação tensa uma oportunidade de anexar territórios alegando legítima defesa quando, na verdade, feriu as leis internacionais e desrespeitou abertamente um dos artigos básicos da carta das Nações Unidas, que proíbe o uso da força para anexar territórios de outros países. Até hoje, Israel mantém quase todo o território tomado em 1967.

O autor narra o clima tenso que existia na região. Cita os ataques dos palestinos, financiados pela Síria, os três soldados israelenses mortos por uma mina e a consequente destruição da vila de Samu. Mas garante que nada disso levou Israel a concluir que um ataque coordenado entre os vizinhos era iminente. Na época, depois de conversar com o primeiro ministro israelense, o embaixador britânico informou a Londres que Israel não se sentia ameaçada pela mobilização das tropas do Egito. Segundo Quingley, o embaixador americano na Jordânia relatou que o rei Hussein estava preocupado com antigas aspirações israelenses a territórios que ainda não havia assegurado. Em seu livro de memórias, o então chefe de operações do exército de Israel, Ezer Weizman, admite que o governo israelense já discutia, antes da Guerra dos Seis Dias, a possibilidade de encontrar uma chance para tomar a Faixa de Gaza.

No livro, Quingley conta que o então General Yitzhak Rabin informou o gabinete israelense que apesar da mobilização militar, o Egito tinha uma postura defensiva e o chefe do Mossad na época (o serviço secreto de Israel) informou o Ministro da Defesa dos Estados Unidos que o Egito não atacaria Israel. Ainda assim, no dia 4 de junho o gabinete israelense aprovou a invasão do Egito dando início à guerra. O livro descreve o que aconteceu em seguida, logo após a votação: “A discussão informal se voltou para medidas que pudessem dar a impressão de que Israel não estava iniciando uma guerra”. Moshe Dayan, que em seguida se tornaria o Ministro da Defesa, afirmou: “Nas primeiras 24 horas, nós temos que ser as vítimas”.

A retórica é arma fundamental da diplomacia. O controle da versão dos fatos, o instrumento número um dos vitoriosos. Israel sabe usar como ninguém a culpa histórica que a humanidade carrega por causa do Holocausto. Não foi à toa que Netanyahu voltou ao discurso de vítima. Mas enquanto os fatos não desmontarem a narrativa da guerra preventiva justificada pela necessidade de defesa, mesma falácia grosseiramente empregada por George W. Bush para invadir o Iraque, vai ser difícil desfazer a tensão no Oriente Médio e negociar qualquer acordo substancial. Obama está próximo de um entendimento com o Irã a respeito do programa nuclear do país e as mais de 50 cadeiras vazias no Congresso são um alento. Mas quem sabe se os mais de 480 políticos que aplaudiram Netanyahu vão, na hora “H”, votar contra um acordo com os aiatolás negociado pela Casa Branca?

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