No lugar das listas vermelhas e do retângulo azul com as estrelas brancas, a bandeira americana, no topo de uma página na internet foi toda reproduzida em preto e branco para falar da desigualdade. Para descrever o país no qual uns ainda são “mais iguais” do que outros. Uma imagem tão forte que imediatamente me fez pensar em uma outra igualmente forte e eloquente: a fotografia gigantesca dos olhos de Eric Garner — o afro-americano desarmado que morreu em Nova York quando levou uma chave de pescoço de um policial branco. O fotógrafo francês JR levou às ruas a enorme ampliação dos olhos de Garner durante a manifestação contra o preconceito e o excesso de violência da polícia. São imagens que, lado a lado, gritam: estamos de olho nessa injustiça.
A última semana ofereceu uma enxurrada de estatísticas que comprovam o que qualquer pessoa que dê uma volta por Washington, Nova York, Chicago e outros centros urbanos do país pode constatar empiricamente. A marginalização das minorias é uma chaga visível nos Estados Unidos, como também é em países da Europa. Os marroquinos na França, os turcos na Alemanha, e assim por diante. Mas aqui eles não são imigrantes voluntários vindos das ex-colônias. São descendentes de homens e mulheres trazidos na marra como escravos que brigaram muito para conquistar os direitos civis que eram reservados aos brancos. Uma guerra que ainda tem várias batalhas pela frente.
O preconceito racial que distorce a relação da força policial com as comunidades afro-americanas não pode mais desaparecer debaixo do tapete. Até mesmo o diretor do FBI James Comey admitiu, em um discurso na Universidade Georgetown, que ele existe e precisa ser combatido. “Estamos em uma encruzilhada”, disse ele. “Enquanto sociedade, podemos escolher viver nosso dia a dia, criar nossos filhos e ir para o trabalhado torcendo para que alguém, em algum lugar faça algo para reduzir a tensão, amenizar o conflito... Ou podemos optar por um diálogo aberto e honesto sobre a relação que temos hoje”.
Comey abriu mão dos subterfúgios e foi direto ao ponto. Repetiu uma frase da canção “Everyone's a Little Bit Racist” (Todo mundo é um pouquinho racista) de um musical da Broadway que diz que ninguém é de fato cego às diferenças de cor. E afirmou que policiais, tanto brancos quanto negros, reagem de forma diferente quando estão diante de um rapaz afro-americano ou de um jovem branco nas ruas.
Segundo Comey, os jovens negros se parecem bem mais com o perfil predominante dos suspeitos que eles costumam prender por conta de roubos e assaltos. Isso não explica o excesso de violência que a polícia emprega em situações absolutamente administráveis. Isso não justifica que, em qualquer circunstância, a primeira e aparentemente única reação que os policiais têm é sacar a arma e disparar. Mas traz à tona a existência do preconceito, que precisa ser combatido, e a realidade a que está submetida a grande maioria da população afro-americana, como mostraram os estudos publicados esta semana.
Segundo a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), os Estados Unidos são um dos poucos países do primeiro mundo no qual uma parte maior dos recursos para a educação são destinados às escolas frequentadas por crianças mais ricas do que aos estabelecimentos que atendem os mais pobres. A organização National Urban League publica, há onze anos, um levantamento sobre as desigualdades entre brancos e negros no país. A edição deste ano, que acaba de sair, confirma: a minoria afro-americana continua vivendo em um país com menos recursos e possibilidades do que os Estados Unidos que os brancos conhecem.
Imagine que o país fosse um bolo. De acordo com o estudo, enquanto os brancos têm um bolo inteiro, os negros têm 72,2% do quitute. Esse é o chamado índice de igualdade geral. A organização analisou também o resultado escolar de brancos e negros em 70 áreas metropolitanas. Em todas elas, os alunos brancos têm resultados melhores do que os negros. Em cidades como Washington, a capital do país, os alunos afro-americanos terminam o ensino médio com menos de 20% da capacidade de resolver problemas matemáticos e de se expressar por escrito dos colegas brancos. Um caso extremo. A média nacional é de 76,1%.
O Instituto de Política Econômica analisou os dados do último Censo e mostrou como a realidade é diferente, também, no mercado de trabalho. Em todos os estados, o índice de desemprego entre os negros é sempre bem mais elevado do que entre os brancos. Na média nacional, quando o desemprego caiu para 5%, entre os afro-americanos continuava em 11%. Se as escolas frequentadas por maioria afro-americana continuam recebendo o menor volume de recursos, os professores menos preparados e os alunos se formam com um nível de conhecimento bem inferior, essa realidade não vai mudar tão cedo.
Não é por outro motivo que os jovens de Ferguson, que se organizaram e organizam protestos diários na cidade desde que o policial branco Darren Wilson matou o jovem negro Michael Brown, têm uma pauta extensa de reivindicações. Eles não se limitaram a pedir punição para o policial e mudança das práticas da polícia na cidade. Além do fim do preconceito e do excesso de violência policial, eles exigem emprego, moradia e o fim da criminalização dos jovens afro-americanos que seguem das escolas para os presídios em números cada vez mais alarmantes. Eles entendem que os afro-americanos só viverão na mesma América que os brancos habitam se for possível modificar, de forma mais profunda, o projeto econômico do país.