Por monica.lima

Tudo terminou em menos de nove segundos. Eric Harris, um afro-americano de 44 anos, morador de Tulsa, no estado de Oklahoma, entrou no carro do suposto comprador, mostrou a arma e se deu conta de que um outro automóvel se aproximou e logo estacionou no mesmo pátio. Olho treinado, ele percebeu logo que se tratava de uma operação policial. Abriu a porta e correu. Não foi longe. A câmera no uniforme do policial se aproxima rapidamente e registra o momento seguinte, quando Harris é derrubado, dominado e baleado. Dessa vez não foi um cidadão que sacou o telefone e registrou a cena. Foi o equipamento policial. E agora, o autor do disparo não deu a tradicional desculpa “ele me ameaçou”. Não. O policial admitiu imediatamente: “eu errei. Peguei o revólver achando que era o taser” (a arma que dá choque).

O incidente se tornou mais e mais bizarro ao longo da semana quando os detalhes vieram à tona. O policial que matou Harris é um senhor branco, de 73 anos, que nunca foi policial de fato. Robert Bates é o principal executivo de uma empresa de seguros. Milionário, ele é amigo do xerife de Tulsa, cargo disputado no voto em muitas cidades dos Estados Unidos. Bates é tão amigo do xerife que financiou a campanha dele ao posto. E depois doou carros de patrulha ao departamento de polícia municipal. Com tanta amizade e, aparentemente, fascínio pela profissão de policial, ele conseguiu uma vaga de voluntário para patrulhar as ruas junto com os profissionais da segurança. É o que os jornais chamaram aqui de “brincar de polícia”.

Para tornar ainda mais sério o incidente, o jornal local da cidade, “Tulsa World”, denunciou que Robert Bates sequer passou pelo treinamento mínimo exigido de qualquer cadete para atuar como policial. Segundo fontes do jornal que não foram identificadas, três supervisores do departamento de polícia se recusaram a assinar uma ficha falsa com horas de treinamento e o teste de habilitação de Bates para usar uma arma. Os três foram remanejados para funções de menos prestígio dentro do departamento.

Até aí já havia motivo de sobra para qualquer um erguer as sobrancelhas. Mas Bates não é o único e Tulsa não está sozinha. O estado de Oklahoma tem programas semelhantes em vários municípios. Eles são conhecidos com o singelo apelido de “comprar o distintivo”. Com doações e influência, Bates comprou o direito de andar uniformizado e armado pelas ruas da cidade. Muito arrependido, ele deu uma entrevista ao lado da mulher e das filhas na qual reafirmou que trocou as armas. De pé, ele mostrou onde carregava o revólver e onde ficava o taser. Um na cintura. O outro no peito, por dentro do paletó do uniforme. Elas sequer estavam lado a lado. O erro é gigantesco. Harris pagou com a vida. E ninguém sabe quantos outros Bates estão circulando hoje, neste momento, em patrulhinhas de cidades do país.

Pior, quem conhece de perto o treinamento dos policias dos Estados Unidos alerta que os voluntários são uma parte pequena do problema. Mais sério ainda é o despreparo de quem se forma nas academias de polícia. Maria Haberfeld nasceu na Polônia e cresceu em Israel, onde se tornou oficial de polícia e atuou na unidade de combate ao terrorismo. De Israel ela se mudou para Nova York, trabalhou na Administração de Combate às Drogas, no combate aos crimes de colarinho branco e começou a pesquisar os diferentes métodos e programas de treinamento de policiais do mundo inteiro. Hoje, dá aulas sobre o assunto na Universidade John Jay e tem uma coleção de livros publicados sobre o tema.

De saída, ela acaba com os critérios de seleção e com os programas de treinamento adotados nos Estados Unidos. Na Carolina do Sul, onde um policial foi flagrado recentemente atirando contra um homem que fugia e morreu com cinco tiros que entraram pelas costas dele, a preparação dos policiais durava apenas nove semanas. Agora, foi ampliada para 12. Ou seja, em três meses o candidato ingressa na polícia e sai “pronto” para agir. “Em Nova York”, diz Maria Haberfeld, “o curso da academia de polícia dura quase sete meses. Em New Jersey são cinco. Mas a média de treinamento, no país, é de quatro meses”. Enquanto isso os cadetes da Finlândia, por exemplo, passam quatro anos se preparando antes de sair às ruas. “É um treinamento fantástico que todo país democrático devia adotar”, diz ela.

Mas é uma exceção. Ainda assim, ela diz que quase todos os países da Europa adotam programas mais intensos do que os dos Estados Unidos. Holanda, Irlanda, Grã-Bretanha... São no mínimo seis meses para colocar um oficial armado nas rondas. Em três meses, diz a professora, não se pode ensinar quase nada a respeito do uso da força. Ela vai além: “não se trata apenas do uso tático da força (como mirar, imobilizar, etc.) mas também o aspecto emocional e social do uso da força”. Ela acha que a escolha dos candidatos também devia seguir critérios mais rigorosos. Por exemplo: nada de recrutar quem tem menos de vinte e cinco anos.

“Nós sabemos que o ser humano ainda está se desenvolvendo psicológica e fisiologicamente até vinte e poucos anos. Aqui nos Estados Unidos é possível se tornar um policial com 19 ou 20 anos. Isso, para mim, é um problema”. Mas não é o único. Em vários países, é preciso disparar para o alto, dar um tiro de alerta antes de mirar em alguém. E o que diferencia os Estados Unidos do resto do mundo: o excesso de armas de fogo em circulação. A população civil, aqui, está armada como em nenhum outro lugar. Os policias saem às ruas já imaginando que podem ser recebidos com bala em muitas situações. E ninguém pode falar sobre isso, diz Maria Haberfeld, porque o lobby das armas é tão poderoso que quem levanta essa lebre vira logo inimigo público.

Com os problemas raciais que o país enfrenta, a quantidade de armas em circulação e as falhas nos programas de treinamento e seleção de recrutas, ela conclui: “fico surpresa de não ver um número ainda maior de incidentes.”

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