Por bruno.dutra

O país foi pintado para o mundo como vilão das tramas melodramáticas de Bollywood, a sua gigantesca indústria de cinema. Os indianos bateram o pé em Genebra por uma cláusula permanente que os permitissem conceder subsídios além do limite para seus agricultores, sem que corressem o risco de serem denunciados na OMC. A última grande sociedade rural do mundo insistiu nisso, mesmo que significasse conquistar novos inimigos ou ficar isolada.

Várias vozes — diplomatas, jornalistas e experts — de outros países descreveram a posição indiana como suicida. O que mais suscitou o choque é o fato de o novo governo, liderado por Narendra Modi, ser visto como um promotor dos negócios, daí ter recebido apoio maciço do empresariado e de investidores. O acordo de “facilitação de comércio” poderia adicionar US$ 1 trilhão à economia mundial, criando 21 milhões de empregos, 18 milhões deles em países em desenvolvimento. Mas o foco de Modi estava na segurança alimentar do seu país. Poucos políticos indianos, pró-negócios ou não, teriam coragem de arcar com as consequências de tomar uma atitude que pudesse prejudicar a vasta maioria de sua população: mais de 60% dos 1,2 bilhão de indianos dependem direta ou indiretamente da agricultura.

São 700 milhões de pessoas. Cerca de 80% dos indianos vivem com menos de US$ 2 por dia. A imprensa internacional falava em isolamento da Índia. Mas dentro do país, Modi não ficou tão isolado assim. Até a mídia especializada em economia — geralmente afinada com as posições globais — o apoiou. Entre os indianos comuns, Modi ganhou muitos pontos. O que se dizia na Índia, na semana passada, é que a posição dos países desenvolvidos é “hipócrita”.

Alguns comentaristas criticaram a posição do governo em estocar vastas quantidades de arroz e trigo (sendo que parte acaba apodrecendo). Mas poucos a analisaram como um tipo de visão “nacionalista” no comércio global. “São assuntos internos que o novo governo sabe que deve atacar urgentemente (o estoque alimentar). O governo mostrou que preferia não assinar um acordo multilateral do que ser acusado de renegá-lo mais tarde”, explicou Chandrahas Choudhury, renomado jornalista e escritor, em artigo para um dos principais jornais de finanças do país, o “The Mint”.

Mas não há, claro, unanimidade no país sobre a postura do novo governo com relação à OMC. O Partido do Congresso — que liderava a coalização parlamentar do governo anterior e hoje é a principal força de oposição a Modi — aproveitou para cutucá-lo, dizendo que o colapso das negociações em Genebra levaram a Índia a um “virtual isolamento”.

Mas os especialistas em geral tem apoiado Modi. Para Roshan Kishore, acadêmico especializado em segurança alimentar no Sul da Ásia, a Índia não estava isolada em Genebra, e o problema não é somente de seu país. “Com crescentes aumentos de preços de cereais e o desvio da produção para projetos de biocombustível no mundo desenvolvido, percebeu-se que a promoção da produção doméstica de alimentos é uma salvaguarda fundamental para a segurança alimentar.

A proposta do G-33 (grupo de países na OMC coordenados pela Indonésia), que respaldou as negociações de segurança alimentar em Bali, foi uma manifestação dessa mudança da realidade na economia global. É uma distorção tentar retratar a posição da Índia como autocentrada”, analisou Kishore.“Enquanto a Índia concede US$ 12 bilhões de subsídios agrícolas a seus 500 milhões de agricultores, os EUA dão cerca de US$ 120 bilhões para seus 2 milhões de agricultores. Os números podem ser contestados, mas não a tendência”, argumentou o analista Asit Ranjan Mishra, em artigo publicado no “The Mint”.

O secretário de Estado dos EUA, John Kerry, esteve na Índia justamente quando fracassou o acordo na OMC. Profundamente desapontado, tentou, sem sucesso, costurar um compromisso. Washington acreditou na ilusão de que um governo Modi — que ganhou fama de ter pulso forte — passaria o trator no Parlamento indiano. Fica cada vez mais claro que, em política externa e com relação ao comércio global, Modi vai seguir a linha “a Índia em primeiro lugar”, de uma forma que nem o Partido do Congresso fez antes. A sua posição na OMC foi a segunda chacoalhada nos investidores estrangeiros em dois meses de governo.A primeira foi o anúncio do orçamento da União, que não incluiu medidas que sinalizassem uma segunda geração de reformas liberalizantes da economia indiana.

“A realidade é que não há como o primeiro-ministro indiano se comprometer com essas questões (estoque alimentar) sem perder a credibilidde dentro de seu país”, observou Siddharth Varadarajan, um dos mais respeitados jornalistas indianos. Modi opera dentro da maior democracia do mundo — onde os pobres votam em massa, muito mais do que a classe média. Eles sempre esperaram que o seu governo lhes garanta o arroz e o pão de cada dia. Daí a diplomacia do arroz ter passado o rolo compressor no acordo de Genebra.

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