Por diana.dantas

A vaca é um assunto sagrado e milenar na Índia. Mas ultimamente este animal pacífico tem sido alvo de debates violentos no país de maioria hindu que coloca a vaca no panteão dos deuses. Segunda maior exportadora de carne bovina do mundo, atrás apenas do Brasil, a Índia, sob o governo do nacionalista hindu Narendra Modi, vem apertando o cerco a abatedouros nos estados onde estes estabelecimentos são permitidos. O lobby das vacas está cada vez mais forte. Nessa semana, a ministra da Mulher, Maneka Gandhi, pediu a funcionários para limpar os escritórios com um desinfetante natural, feito de urina de vaca. Há tempos produtos deste tipo fazem sucesso na Índia. A bebida “Goloka Pay”, feita de urina de vaca com extratos de ervas, sabores laranja ou limão, foi apelidada pela implacável mídia indiana de “Cow-Ka-Cola”.

O assunto começou a dominar o noticiário internacional neste mês após alguns estados terem aprovado leis draconianas contra abatedores. No dia 20, por exemplo, Haryana, do lado da capital Nova Délhi, no Norte do país, aprovou uma legislação que pune com dez anos de prisão o abate de vacas. Uma lei semelhante passou também em Maharashtra, o segundo estado mais populoso da Índia (112 milhões de habitantes), cuja capital é Mumbai, o coração financeiro do país e um dos centros cinematográficos do país, onde ficam os estúdios de Bollywood. Com isso, dos 29 estados indianos, 20 proibiram completamente o abate de vacas. Sobrou até para os tigres e leões dos parques nacionais dos estados governados pelos nacionalistas hindus: eles passaram a ser alimentados com frango. Uma foto publicada em um jornal indiano nesta semana mostra um funcionário do Parque Nacional Sanjay Gandhi oferecendo uma asa de galinha para um decepcionado tigre.

Estrelas da maior indústria cinematográfica do planeta, que são reverenciados como deuses hindus, começam a ser atacadas nas redes sociais por se atreverem a comer carne de vaca. Foi o que aconteceu com Rishi Kapoor, que pertence a um clã cinematográfico: a família Kapoor se confunde com a própria história do cinema no país. Rishi cometeu o deslize de comentar, em um tuíte, que a proibição da carne de vaca em Mumbai explicaria a aparição de carne de canguru e de veado, que ele viu em um buffet de um hotel cinco estrelas durante uma filmagem. Rishi passou a ser perseguido pelos fundamentalistas hindus (“Como se eu fosse de uma família de matadores de vacas infiéis”). Ele deu entrevistas admitindo que, sim, come carne de vaca. Mas somente no exterior. Ele jurou que nunca comeu sequer um bife de vaca indiana sagrada.

A proibição desencadeou um ato de protesto no estado de Kerala, no Sul da Índia, um dos que mais consome carne de vaca no país. A Federação dos Jovens Democráticos da Índia, de esquerda e secularista, organizou um festival do bife no último dia 10. A oposição tem dito que um dos resultados dessa política de ampliar a proteção à vaca, mais do que já existia antes, é que o preço de outras carnes, como peixe e frango, vai subir.

Para um estrangeiro é difícil imaginar o nível de sensibilidade que o tema “vaca” assume na Índia. O historiador Dwijendra Narayan Jha, da Universidade de Délhi, especialista em história da Índia antiga e autor do livro “The Myth of the Holy Cow”, foi ameaçado de morte e teve que ficar confinado em seu alojamento no campus da universidade durante o governo anterior dos nacionalistas hindus (entre 1998 e 2004) por ter mostrado evidências, confirmadas por vários acadêmicos de renome, de que se comia carne de vaca no período védico (1500 a. C a 600 d.C) quando era comum o sacrifício de animais pelos religiosos brâmanes, da casta mais alta da pirâmide hindu. “Quando você usa a palavra vaca, as pessoas perdem a razão”, comentou o acadêmico na época.

Segundo Jha, o tabu em torno do consumo da carne de vaca começou no século I d.C: os brâmanes teriam aderido ao vegetarianismo entre outros motivos porque haviam perdido terreno para o Budismo, que criticava o sacrifício de animais. Já no século V d.C matar uma vaca passou a ser um crime tão grave quanto o de assassinar um brâmane. Grupos radicais hindus organizados protestam contra o abate de vacas desde o século 19. Em 1857, o Grande Motim Indiano — o primeiro movimento de resistência à dominação britânica — foi desencadeado por um boato de que a gordura de vaca e de porco estaria servindo para lustrar as balas usadas pelos chamados sipais (soldados indianos que serviam ao exército colonial britânico). Isso teria reforçado o clima de revolta entre soldados hindus (por sua adoração às vacas) e muçulmanos (pela aversão aos porcos). Hoje, grupos “vigilantes hindus” cada vez mais atacam motoristas que levam gado para o abate, sejam vacas ou búfalos (estes não tiveram a sorte de serem considerados sagrados). Os militantes libertam os animais, ateiam fogo aos caminhões, roubam os celulares dos motoristas e muitas vezes os espancam.

Oitenta por cento da população indiana é hindu, mas muitos não são vegetarianos e comem carne de vaca, ao contrário da crença geral. Os críticos das novas leis dizem que elas discriminam muçulmanos, cristãos e hindus de casta baixa, os grandes consumidores de carne de vaca na Índia. É a carne mais barata do mercado indiano e por isso, uma importante fonte de proteína para os pobres. Os críticos dizem que muitos ficarão desempregados, especialmente muçulmanos que trabalham em abatedores. As leis atuais se aplicam à carne de vaca e de touro. Boa parte da carne exportada pela Índia é de búfalo. A exportação saltou 11 vezes em uma década, movimentando US$ 4,35 bilhões em 2014: boa parte vai para Vietnã, China e África.

Mas os hindus mais radicais querem ampliar a campanha. Além de quererem proibir o abate de vacas em toda a Índia, pretendem limitar a exportação de carne de búfalo. Seria um presente para os exportadores brasileiros.

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