Por monica.lima

As duas viagens do ex-presidente Nicolas Sarkozy à Índia em 2008 e 2010 ficaram marcadas pelas visitas que ele fez ao belíssimo Taj Mahal, o monumento do amor, na verdade o túmulo da princesa Mumtaz, erguido no século 17 pelo marido, o imperador Shah Jahan. Em 2008, o assunto que dominou a mídia foi o pedido da Índia para que o francês não viesse acompanhado da então namorada Carla Bruni: isso iria ferir o moralismo local. Ela só conseguiu visitar o Taj em 2010, quando já estava casada com Sarkozy. Mas a grande notícia daquelas duas visitas estava escondida detrás do mármore branco do Taj: era a negociação da maior encomenda de defesa do mundo. A Índia havia anunciado que iria comprar 126 aviões de combate multitarefa de porte médio. E os franceses queriam vender os Rafales, da Dassault.

O tema Rafale é alvo de intensas polêmicas na Índia desde aquela primeira visita de Sarkozy. Cinco empresas se candidataram para a licitação: além da Dassault francesa, a russa RAC MiG, a sueca Saab, a americana Lockheed Martin, e um consórcio europeu (Grã-Bretanha, Alemanha, Espanha e Itália), que apresentou dois modelos, o F/A-18 Super Hornet e o Eurofighter Typhoon.

Em 2012, o governo indiano, então liderado pelo primeiro-ministro Manmohan Singh, do Partido do Congresso, escolheu a Dassault. O acordo era de que 108 dos 126 Rafales iriam ser construídos com transferência de tecnologia pela Hindustan Aeronautics, na cidade de Bangalore. Foi um grande impulso para a empresa francesa que tem tido dificuldade de encontrar compradores para o Rafale: a única venda foi feita recentemente ao Egito do general Abdel Fattah al-Sisi, que comprou 24 jatos. Mas a Índia passou os últimos três anos sem assinar o acordo com a Dassault.

Na semana passsada o gato subiu no telhado. A promessa de compra estimada em US$ 15 bilhões foi enterrada durante visita do atual primeiro-ministro indiano Narendra Modi à França. Dessa vez, a mídia indiana destacou o nav pe charcha (do hindi, bate-papo no barco) de Modi com o presidente François Holland em um passeio pelo Rio Sena. A notícia dos Rafales ofuscou os 17 acordos comerciais assinados pelos dois líderes. Isso porque Modi anunciou a compra de 36 jatos franceses, por um preço estimado em US$ 4,25 bilhões. O grande problema é que estes Rafales já desembarcarão na Índia prontos para voar, ou seja, sem a transferência de tecnologia.

Os indianos, acostumados à democracia, adoram debater, como explica um de seus maiores intelectuais, o prêmio Nobel de Economia Amartya Sen, em seu livro “Argumentative Indians”. Os canais de TV do país transmitem debates diários sobre os assuntos mais quentes com a participação de cinco ou mais pessoas com posições diferentes. Geralmente é difícil entender boa parte da discussão porque todos falam ao mesmo tempo, inclusive o âncora, que no lugar de apartar costuma colocar mais lenha na fogueira. A polêmica decisão de Modi serviu como combustível para o fogo.

Duas linhas de discussão foram abertas e ambas têm relação com o fato de a Índia, o maior importador de armas do mundo, ser um país em desenvolvimento. Ou, como definiu certa vez o jornalista Jug Suraiya, do “The Times of India”, um país com dupla personalidade: a Índia seria o dr. Jekyll e o Mr. Hyde, o médico e o monstro, dois opostos (a riqueza e a pobreza) coexistindo em um mesmo corpo. Parte da gritaria foi pela decisão de gastar com defesa quando o país ( que tem 960 milhões de habitantes sobrevivendo com menos de US$ 2 por dia) não tem uma guerra iminente pela frente, nem com a vizinha China — apesar das disputas fronteiriças —, nem com o rival Paquistão. A Índia, no entanto, já travou guerras recentes com os dois e hoje tem menos esquadrões de caça totalmente operacionais (um total de 25) do que o Paquistão (com 26), que vem sendo alimentado pela própria China. Os que condenam a gastança com equipamentos militares reconhecem que a Índia tem uma vizinhança problemática (para dizer o mínimo). Mas argumentam que a maior ameaça à segurança do país é doméstica, com toda essa miséria.

A segunda linha, porém, foi a que esquentou mais os debates: a de que um negócio como esse só poderia ter sido fechado com a condição de que os aviões fossem construídos na Índia, com transferência de tecnologia, como aconteceu com os velhos MiG-21 russos que compõem o grosso da frota das Forças Aéreas do país. A Índia vai ultrapassar a China como país mais populoso do mundo, chegando a 1,6 bilhões de habitantes até meados do século. Se Pequim enfrenta o desafio de ver a sua sociedade envelhecer rapidamente, metade da população indiana tem menos de 25 anos e 65%, menos de 35. Precisa criar 10 milhões de empregos por ano.

“Grande notícia para a França! A decisão vai trazer receita e criar muitos empregos”, ironizou um artigo da revista “Forbes”, lembrando que a França tem um PIB per capita de US$ 42 mil e a Índia, de apenas US$ 6 mil. Em outro artigo, na revista “Business Standard”, o jornalista Ajai Shukla constatou que os “franceses foram recompensados por sua obstinação com o que queriam: uma encomenda que não incluísse a transferência de tecnologia”. O projeto de Modi, de atrair empresas estrangeiras para o país, o badalado “Make in India”, disse Shukla, foi decepado na guilhotina francesa.

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