Houve uma época em que Itália e máfia eram sinônimos. O cinema e a literatura exploraram à exaustão o tema. Hoje, é o México que ganhou a imagem global de violenta terra sem lei, devido às suas gangues de narcotraficantes e a impunidade dos crimes. O Festival de Cannes deste ano parecia uma caixa de ressonância dos problemas mundiais, com filmes cujo pano de fundo são temas como os efeitos perversos da globalização e do capitalismo ("La loi du marché”) e a desigualdade na China, após o seu crescimento acelerado ("Mountains May Depart"). Mas um longa sobre o combate às drogas na fronteira do México com os Estados Unidos (“Sicario”, do diretor canadense Denis Villeneuve), que compete na mostra oficial, causou impacto especial nesta semana.
Emily Blunt (de ‘O diabo veste Prada’) faz o papel da agente do FBI Kate Macer, convocada para participar de uma força-tarefa. Ela se depara com um misterioso oficial do Departamento de Defesa dos EUA. Os dois estão juntos na missão de desbaratar um poderoso cartel de drogas do México e seu esquema de financiamento. O “Sicario”, pistoleiro mexicano, é vivido por Benicio del Toro. Retrato da tragédia do México, o filme mostra a intrincada relação dos cartéis com os políticos. Em uma entrevista para os jornalistas que cobrem o festival, o ator Josh Brolin, que faz o papel do funcionário do Departamento de Defesa, tocou no ponto nevrálgico: “O tráfico de drogas existe porque há uma demanda nos EUA”. Este fato deveria nortear o debate sobre o problema, que certamente não é só mexicano, como também reconheceu o diretor de “Sicario”, que vai estrear no Brasil em setembro e já está sendo cogitado para concorrer ao Oscar. “Todos nós sabemos quanta violência existe no México e, como norte-americano, divido a responsabilidade”, disse. Denis Villeneuve explicou que tentou, com o seu filme, romper a cortina de silêncio que havia sobre a violência mexicana.
O presidente Enrique Peña Nieto tentou manter a manta estendida sobre os graves problemas do país, com uma intensa campanha de marketing ressaltando o turismo e procurando ignorar os fatos relativos à violência e à corrupção. Mas eis que, em setembro do ano passado, explode a bomba: o desaparecimento dos 43 estudantes na cidade de Iguala, estado de Guerrero, no sul, o que provocou protestos no México e no exterior. Os alunos foram entregues pela polícia a gangues locais, vinculadas ao prefeito da cidade. Os narcotraficantes os trucidaram.
As notícias que chegam diariamente nas agências de notícias sobre o México são as mais escabrosas possíveis. Parecem terem saído de um filme de terror. Nos últimos dias, Guerrero — que se transformou no sinônimo de inferno na terra — voltou ao foco jornalístico devido a assassinatos, cada vez mais comuns, de políticos, sejam candidatos às eleições locais regionais no dia 7 de junho, sejam sindicalistas ou dirigentes partidários. Terra sei lei. Mas uma das notícias mais chocantes, que comprova o nível de banalização da violência, a total perda de valores e a certeza da impunidade no país, foi o assassinato de um menino de seis anos por outros três garotos e duas meninas com idades entre 11 e 15 anos, que queriam “brincar de sequestradores”.
A tragédia aconteceu na cidade de Chihuahua. A vítima, Christopher, apelidado de El Negrito,foi submetido a uma longa sessão de tortura primeiro: asfixiado, foi morto a pauladas, pedradas e a navalhadas. El Negrito foi incluído na estatística aterrorizadora de assassinatos de menores na última década no país: 10.876, segundo site “El País”.
Esse cenário cruel fez com que o México entrasse para o triste ranking dos países mais violentos do mundo. O Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), de Londres, divulgou nesta semana um estudo mostrando que há cada vez menos guerras e mais vítimas no mundo. No ano passado foram registrados 42 confrontos (com 180 mil vítimas), quando em 2008 ocorreram 63, com 56 mil mortos. A devastada Síria, atingida por uma guerra civil e pelo Estado Islâmico (EI), figura em primeiro lugar, com 70 mil mortos em 2014 (desde 2011 já foram 200 mil). Em seguida vem o Iraque, com 18 mil pessoas mortas. O México vem logo em terceiro, com 15 mil mortos em conflitos armados no ano passado, principalmente nas guerras de gangues do narcotráfico.
A dura realidade mexicana tem inspirado também romancistas, além de cineastas. Recentemente, o jornalista e escritor Sergio González Rodríguez lançou “El robo del siglo” (“O roubo do século”), uma trama desenvolvida em torno do achado de US$ 205 milhões em uma mansão mexicana. Além do tráfico de drogas local e da corrupção, que corre solta na história, inclusive com a complacência de agências americanas, o autor incluiu na trama um personagem bastante atual:um chinês. No ano passado, o país mergulhou em um escândalo que envolveu a primeira-dama, após ela ter comprado uma mansão que havia pertencido a um grupo chinês vencedor de uma a licitação de mais de US$ 3,7 bilhões para construir o primeiro trem-bala do país. O escândalo acabou obrigando o presidente Peña Nieto a cancelar o negócio. No romance de Rodríguez, o chinês é um contrabandistas de drogas sintéticas. E assim, pelos filmes e livros, a imagem da economia mais potente da América Latina (depois da brasileira) vai para o ralo.