Por diana.dantas

Para um estrangeiro, a Índia é muito difícil de se entender, assim como acredito seja a China, embora eu nunca tenha morado lá. Vivi sete anos em Mumbai e Nova Délhi, mas lá na Índia o primeiro ano é apenas o do choque cultural na veia. Somente no terceiro ano posso dizer que comecei a entender melhor a cultura do país. Entre incontáveis choques culturais, um deles foi o de saber que Brahma — o deus da criação na trindade do hinduísmo — é praticamente ignorado nas preces e reverências dos indianos. Não há quase templos dedicados a ele. Existe apenas um famoso, na cidade de Pushkar (no estado do Rajastão, Norte da Índia).Reverenciadas mesmo são duas outras divindades. Uma é Vishnu, o deus da preservação, representado também em figuras como Krishna (alvo de muitos cultos) e o heróico príncipe Rama (protagonista do épico mitológico Ramayana). A outra é Shiva, o deus da destruição.

Espere aí: o deus da destruição é idolatrado? Sim. É preciso destruir para criar. Brahma só faz o seu trabalho de criação após Shiva desempenhar o seu papel. A morte, para os hindus, é seguida do renascimento em outras formas.

A famosa e milenar cidade de Varanasi (ou Benares), nas margens do sagrado Rio Ganges, é devotada completamente a Shiva. Nesta época do ano, julho, as ruas de Varanasi, que segundo estudiosos teria 3 mil anos de idade, estão repletas de “kanwarias” suados e com bolhas nos pés. São os andarilhos de Shiva: jovens vestidos de laranja que viajam a pé pela Índia em procissões de vários dias até chegar às cidades na beira do Ganges, como Varanasi, para coletar “água sagrada”, infelizmente hoje poluída a ponto de você não ter coragem nem de imaginar encostar seus dedos dos pés no rio. Nas barraquinhas de camelôs em Varanasi, garrafas de plástico de todos os tamanhos e formas são alguns dos produtos mais vendidos. Na Índia do século 21, muitos resolveram abolir a caminhada e adotar motos e carros para encurtar e facilitar as suas procissões.

Depois de ver tantos shivas representados na Índia — inclusive em um templo no qual os devotos dão garrafas de conhaque e de whisky (influência da colonização britânica) como oferendas à imagem de um Shiva raivoso — eu o encontrei surpreendentemente em uma viagem que fiz à Suíça, especificamente para visitar o Cern (Organização Europeia para Pesquisa Nuclear), o gigantesco laboratório de física na fronteira com a França. O Big Bang, a grande explosão que deu origem do universo, é um dos mistérios ali estudados pelos maiores cientistas do mundo. O governo do primeiro-ministro indiano Manmohan Singh (2004-2014) presenteou os cientistas do Cern com uma bela estátua de bronze do Shiva Nataraja, com sua dança cósmica poderosa que simboliza a destruição e a preparação para que Brahma comece o processo de criação.

Os indianos têm a sua noção cíclica do tempo, bem diferente da linear ocidental: passado, presente e futuro. Para os indianos, o tempo é cíclico e isso está simbolizado na sua própria língua: a palavra Kal, em Hindi, significa tanto “ontem”, o passado, como “amanhã”, o futuro. O presente é chamado de “Aaj”.

E o que tem Shiva a ver com a atual ascensão da Índia e da China? Pelas bandas do Oriente, isso é consequência lógica desse processo. No passado, Kal, as duas civilizações milenares eram potências da antiguidade. No ano 1 d.C., a Índia era uma das maiores economias da época, representando cerca de um terço do PIB do mundo. Só não era maior do que a da China, que liderava, como mostraram os estudos do economista britânico Angus Maddison (1926-2010), especializado em histórica econômica quantitativa.

Na Índia (cuja primeira civilização, a incrível e misteriosa Harappa, se desenvolveu há cerca de 5 mil anos), a fase de riqueza continuou durante o chamado período da Idade Média, quando boa parte do subcontinente (com exceção do Sul) era governado pelos imperadores muçulmanos que criaram a dinastia dos mogóis (descendentes de dois conquistadores famosos, Tamerlão, turco, e Gengis Khan, mongol).

A decadência começou no fim da era do Taj Mahal, o exuberante mausoléu de mármore erguido no século 17, “pelo qual todos os sonhos passam”, segundo o escritor Rudyard Kipling. Hoje é o símbolo do amor eterno e eternizou a dinastia daqueles imperadores apaixonados por arquitetura, ópio e vinho.O império se expandiu e gastou tanto com obras faraônicas que começou a ter dificuldades de se sustentar no final do século 18. Em 1803, os britânicos tomaram o controle de Délhi e a dinastia mogol acabou desaparecendo após a primeira Guerra da Independência, em 1857. Um dos fatores que contribuíram, e muito, com a destruição da economia da Índia e da China, foi a exploração sem dó das potências europeias.

Mas o ciclo do tempo é inevitável, lembram os indianos. Recentemente, o ex-presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter lamentou “o inevitável relativo declínio da influência mundial” do seu país devido à ascensão de nações emergentes como China e Índia. “Eles têm aumentado a sua influência econômica e cultural e com isso vão substituir muito do poder que os EUA tinham no passado”, observou ele. É o “Kal” de novo, agora como futuro. Os europeus e americanos não vão continuar a determinar as regras do jogo como antes. É a evolução.

Quanto ao enfraquecimento do papel do velho continente, isso está mais do que claro diante das dúvidas sobre o futuro da União Europeia. A grande potência americana também começa a sentir sinais de que sua dominação não será tão fácil diante da atual multipolaridade, com China liderando a formação de bancos de investimento em infraestrutura, atraindo outros mercados emergentes e até desenvolvidos. Não adianta a grande mídia desmerecer iniciativas como os bancos multilaterais dos emergentes e encontros como o dos Brics (Brasil, Rússia, Índia. China e África do Sul).Quem morou no Oriente já ouviu muitas vezes os indianos (ou chineses) dizerem: se o século 19 pertenceu à Europa e o 20, aos EUA, o 21 é da Ásia. “Huanying” e “Namastê”. Bem-vindos ao futuro.

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