Por nara.boechat

Campo Grande (Rio Grande do Norte) - Com 65 anos de estrada, Maria não quer saber nunca mais de arrumar as trouxas, largar tudo no mundo e ir buscar outro lugar de se viver longe da seca. Já fez isso uma vez, há mais de 50 anos, mais exatamente em 1958. “Aquela foi a pior seca que já vi. Quer dizer, era até este ano. Porque esta é a pior. Mas daqui não saio, já passei pela agonia de ser retirante, deixar o pouco que se tem para trás. Vou morrer aqui”, lembra a lavradora Maria das Graças, que migrou da vizinha Januís para a casa de estuque em Uberaba, localidade rural de Campo Grande (RN).

Na varanda que tem rede e banco de prosear com as visitas, Maria sente o cheiro de terra molhada da chuva que acabara de cair, no meio da tarde de 11 de junho. Tão rápida que a terra seca tragou num instante a água nas poças. “Não reclamo de chuva pouca, não. Deus já me deu demais. E haverá de dar mais, na medida do entendimento dele”, diz Maria, que já traz as graças divinas no nome e numa história de sobrevivente da seca que estas duas páginas vão tentar resumir.

O fim da tarde trouxe uma brisa quente com aroma de chuva vindoura. A nuvem se formava lá pelas bandas de Caraúbas, e Maria das Graças já sabia o que fazer. Foi até o quintal, pegou dois baldes e os deixou aos seus pés, na varanda. Os primeiros pingos levantaram da terra seca aquele cheiro que há muito não sentia, bateram com força nas telhas da casa e começaram a se juntar, como um riacho tímido, na calha de metal. Com uma agilidade impressionante para uma mulher na sua idade, Maria forçou para baixo a ponta da calha com a mão direita, enquanto erguia o balde com a esquerda de forma a posicionálo para colher algo precioso que lhe faltou o inverno inteiro: água.

Foi nuvem passageira. Mas rendeu um balde e meio — pouco mais de 20 litros — a quem carecia tanto. Maria levou os baldes para a cozinha, era a água bem-vinda de cozinhar o feijão e o macarrão de amanhã. E o que sobrasse iria para a cisterna, ficaria para as necessidades de higiene da casa. “A cisterna está quase seca, o que o carro-pipa trouxe vai se acabando. Qualquer chuvinha que venha já ajuda”, conta ela, que pagou R$ 150 pelo carreto no início do ano e, de lá para cá, só fez poupar o líquido. “Antes da pipa, lá para os tempos de dezembro, a gente teve noite de ir dormir com sede. O senhor não queira passar por isso.”

Maria não passou por isso sozinha. O marido, José, aposentado por invalidez, e o filho caçula, Patrício, de 26, lhe fizeram companhia. Os outros três filhos já saíram de casa para formar vida própria. “Do que eu saiba, estão bem. Sempre mandam notícia”, diz ela, que batizou-os com o sobrenome Araújo, do marido. Sobrenome que ela mesmo não tem nos registros oficiais. E faz prova. Vai lá dentro, traz a carteira de identidade e o título de eleitor. Maria das Graças. Ponto.

“Muita gente acha graça, que nem o senhor. Mas já me acostumei”, ela ri, exibindo os dodocumentos. O marido, titular do descanso na rede da varanda, balança a cabeça, como se a mulher fizesse travessura. O filho caçula ainda brinca: “Ainda bem que ela me registrou com o Araújo, senão era só Patrício”. E os três riem na presença dos dois forasteiros que Maria convida a visitar a plantação.

Não há quem imagine esforço de plantar no meio daquele cenário de seca. Por trás da casa de estuque, na beira da BR-110, no trecho final dos 27,6 quilômetros de terra que ligam Upanema a Campo Grande, Maria pega uma trilha que leva ao baixio, como ela chama o lote de terra no declive do terreno. O baixio resguarda as últimas águas na seca, já que fica na parte mais baixa de onde se pisa. Ali, por incrível que pareça, Maria mostra as fileiras plantadas de feijão verde, recém-molhadas pela chuva. Foi só o que ela plantou – e por pura insistência. “Sou teimosa que só com feijão verde”.

Além de uma boa dose de teimosia, Maria conta com pouco apoio. “Só esse meu filho me ajuda. O resto, eu faço sozinha”, diz ela, apontando para Patrício. Um pouco adiante, um muro destruído é prova da chuva forte que se abateu sobre Campo Grande entre os dias 18 e 21 de abril. Nesses quatro dias, choveu 230 milímetros, um assombro em se tratando de semiárido. “Chuva de quatro dias não sustenta plantio, mas esse feijão verde resistiu até agora. Vou recolher o que der e ainda comer dele este ano”, garante Maria.

Que ninguém duvide. Para atravessar a estiagem, Maria e Patrício fizeram milagre digno de muito santo cultuado Nordeste afora. Todos os dias, às três da madrugada, Patrício levantava, tocava a charrete para a caatinga na direção de Upanema e ficava até o amanhecer cortando xiquexique para alimentar os animais. “De abril do ano passado para cá, foi xiquexique que sustentou os bichos”, diz Patrício.

Como já quase não havia mandacarus, as maiores e mais resistentes plantas da caatinga, o jeito foi cortar os baixos xiquexiques, arrancar os espinhos, assar na fogueira em campo aberto e trazer para dar aos animais. “Depois de assados, a gente corta a facão, tritura e dá como ração”, explica o rapaz, que gosta de andar de moto, mas não tem carteira. Os xiquexiques assados salvaram quatro vacas e 43 cabras – nenhum bicho foi perdido na casa de Maria.

A agricultora trilhou o caminho de tantas sertanejas no amor pela terra. Aprendeu a plantar com o pai aos 7 anos, “com uma enxadinha bem pequena”, como ela gosta de lembrar. Até formar o baixio em Uberaba, Maria pelejou contras as estiagens em outros cantos do sertão potiguar, desde que deixou Januís, aos dez anos, acompanhando a família retirante.

“Minha mãe morreu de parto aos 37 anos, dando à luz a nona filha. Viveu pouco, mas pelo menos sofreu menos”, diz ela. As lembranças mais vivas são da avó. “Essa morreu com 105 anos, e com o tino dela todinho. Eu peço a Deus para ser assim, ficar com meu tino até o final, trabalhando na terra. O que não quero é parar de trabalhar e ficar encostada, pensando em coisa sem sentido, tomando esses remédios caros de tirar gente da cama. Que Deus me leve antes de dar trabalho aos outros.”

Caminhando rápido pela trilha, Maria cruza um pequeno córrego, que voltou a se destacar da terra seca em volta por conta da chuva da tarde. Dá um sorriso e aponta: “Se quiser tirar a lama do sapato, é a chance”. Todos se riem e o fotógrafo registra a cena. Patrício observa: “Ela repara em tudo.”

O sorriso dá lugar a um olhar de preocupação quando o assunto volta ser a seca. Não a que passou, mas a que virá. “Dizem aí por fora que Campo Grande foi onde mais choveu por esses cantos do Rio Grande do Norte. Se for verdade, a situação vai ficar feia. Se aqui está assim, faço ideia de onde não caiu água.”

É verdade. Segundo dados da Empresa de Pesquisa Agropecuária do Rio Grande do Norte (Emparn), as regiões Oeste e Central — onde ficam 99 dos 167 municípios potiguares, com uma população estimada em 1,25 milhão de habitantes, quase 40% do total do estado — registram situação de seca extrema este ano pelas poucas chuvas. E o inverno sertanejo vai chegando ao fim, já que a partir de agosto a previsão é de recomeço da estiagem. Campo Grande pode ser considerado um “oásis” nesse deserto: de janeiro a maio, choveu no município 704,2 milímetros, acima dos 602 considerados como de um “inverno normal” pela Emparn. Os outros ficaram bem abaixo.

Longe de se achar em um paraíso, Maria também refuta a seca como um inferno. Para suas mãos calejadas, a estiagem é mais uma adversidade que a vida reserva a quem passa por aqui. “Não vou dizer que não sofro vendo os bichos sofrerem, vendo a terra seca, sentindo a dor de não plantar e não colher, dormindo com sede e passando dias sem me banhar direito. Mas pior é ver briga de filho por conta de dinheiro, de casa, de alguma herança que a gente deixe. Isso eu rezo todo dia pra não acontecer depois que eu for embora.”

As rezas para não ver briga de filho têm sido atendidas — não há indícios de desavenças na família. E Maria se contenta com pouco. A chuva da tarde foi curta. Doze minutos de relógio. Ela bem que pediu um pouco mais em suas preces diárias, algo como uma semana ou mais de chuva, ao menos para levar adiante alguma intenção de plantar algo mais que o feijão verde, e sonhar com a colheita. Não veio o tanto pedido nas rezas diante das imagens de São João, São José, São Francisco de Assis, do Padre Cícero e do Sagrado Coração de Maria, altar de fé na parede da sala. Mas deu para aguar o feijão verde, e só de olhar os brotos molhados ela se emocionou: acariciou os talos, escondeu lágrima na lapela do vestido puído.

Nem precisava mesmo de sobrenome em documento oficial. Porque se essa sertaneja que não se entrega tiver algum dia de alongar o nome para um registro qualquer, já vai estar na ponta da língua, como ela disse e repetiu depois da chuvinha de nada de 11 de junho de 2013. E nem teria sobrenome mais apropriado de se ter: “Eu sou Maria das Graças de Deus.”

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