Rio - O cinquentenário do golpe de 1964 trouxe à tona avaliações antagônicas – como cabe a uma democracia – sobre o que seria da economia se os militares não tivessem derrubado João Goulart em 1º de abril daquele ano. Direitistas adivinham que seríamos uma Cuba continental, comunista e agrícola. A esquerda vislumbra uma nação próspera, moderna e igualitária. Mais difícil do que avaliar males e benesses do ‘milagre econômico’ é imaginar como seria a política se os partidos e líderes não tivessem sido eliminados ou anulados por duas décadas.

A crise de confiança nas instituições neste início de século é internacional, mas as grandes nações democráticas exibem partidos centenários. As legendas brasileiras criadas no democrático ano de 1945 poderiam ter 68 anos se não tivessem sido cassadas. Os principais partidos atuais têm 34 anos – e só 25 de eleições presidenciais. Não foi por acaso que, vinte e nove anos após a vitória de Janio Quadros e João Goulart (1960), os brasileiros voltaram às urnas para eleger um aventureiro sem pedigree ou lastro partidário, Fernando Collor de Mello, do passageiro PRN.
“Os partidos só criam raízes no eleitorado se tiverem muito tempo. Por isso, a perda foi enorme”, conclui o cientista político Ricardo Ismael, da PUC-Rio. “Só se aprende a votar votando.” Se o brasileiro desaprendeu a votar, a repressão castrou a cultura e emperrou o avanço do capitalismo, à medida que sindicatos deixaram de lutar pela distribuição da riqueza. “Isso só começou a mudar com o sindicalismo do ABC no fim dos anos 1970, quando surgiu Lula”, ressalta.
Ismael tinha quatro anos em 1964. “Com medo, as famílias desestimulavam nossa atuação política. Isso acontecia na escola e em tudo que é canto. Todo país forma seus líderes no movimento estudantil, operário, nas associações. O medo eliminou esses espaços e a politização.” Ele faz uma ressalva: não dá para colocar só na conta dos militares o desencanto atual com a política. “É um desprezo associado a escândalos e práticas individualistas. Em 1989, todos queriam votar, e o título de eleitor era muito popular. Hoje temos um problema da democracia para a democracia resolver.”
O Brasil tinha três grandes partidos nas eleições presidenciais que deveriam ter ocorrido em 1965. O PSD lançaria Juscelino Kubitschek, e a UDN tinha Carlos Lacerda. Como Jango, do PTB, não poderia se candidatar mais, seu partido estaria livre para apoiar JK. “Se bem que, do jeito que Brizola era, é difícil imaginar que ele não se lançaria”, lembra Ismael. O regime militar encerrou a carreira de JK e Lacerda. Brizola ainda voltou com força total nas eleições para governador do Rio em 1982. Com o nome proibido no Brasil durante duas décadas, no entanto, sua influência ficaria restrita ao Rio e ao Rio Grande do Sul.

Nascido no ano do golpe, o cientista político Fabiano Santos, do Iesp/Uerj, lembra que uma geração de jovens idealistas passou direto da vida estudantil para a luta armada, sem chance de atuar na política com os líderes da época. É o caso de Dilma Rousseff, que sobreviveu às torturas e acabou se elegendo presidenta pelo PT. Outra consequência nefasta para a política, na visão de Fabiano, foi a identificação da direita com o militarismo. Isso impede, até hoje, que os liberais se assumam. “Eles temem ser confundidos com herdeiros da repressão, o que dificulta debater ideias.”
Fernando Lattman-Weltman, da FGV, não vê a despolitização como o pior filhote do regime militar. A eleição de Collor, para ele, foi só “um ponto fora da curva”, pois logo o brasileiro se reconheceu nos partidos novos, PSDB e PT, que pouco têm a ver com as antigas estruturas. “Heranças malditas mesmo são a má distribuição de renda, o sucateamento da escola pública, a mercantilização da saúde, o desastre ambiental de políticas econômicas insustentáveis e megalomaníacas”, lista Fernando. Na política, o desafio é superar hábitos exacerbados nos tempos verde-olivas, como o desrespeito aos direitos humanos pelas forças policiais e a falta de habilidade para mediar conflitos. “A ditadura é o regime mais burro e emburrecedor. Se ninguém pode criticar, qualquer zé-mané com um poderzinho vira chefete, e isso atrasa tudo. Só foi bom para quem encheu as burras de dinheiro com a corrupção que não podia ser denunciada pela imprensa. Hoje a imprensa faz muita bobagem, mas é muito melhor do que ter jornais amordaçados”, completa. Fabiano Santos, na mesma linha, diz que o governo autoritário contribuiu para criar uma visão negativa da política. “As instituições do Estado perderam transparência por falta de fiscalização, e a corrupção se aprofundou”, conclui.
Desde 13 de março, no cinquentenário do Comício de Jango na Central, O DIA vem publicando reportagens e reflexões sobre o golpe. Chegamos ao fim da série hoje com uma homenagem a alguns dos 475 idealistas, a maioria jovens, contemporâneos da presidenta Dilma Rousseff, que perderam a vida e a chance de contribuir para a consolidação da democracia. Eles não festejaram a volta do voto nem poderão ajudar o país a superar o desafio dos novos tempos, de conciliar crescimento com liberdade e valorização da vida política. Que inspirem os que tiveram melhor sorte.
Prejuízo intelectual imenso
Além de assassinar brutalmente quase 500 vítimas, a ditadura causou um incalculável prejuízo intelectual para o país com o extermínio de diversas personalidades que atuavam na política nacional no início dos anos 1960. Entre as figuras que despontavam na liderança de movimentos sociais estavam diversos estudantes, camponeses e políticos com nome já consolidado como Carlos Marighella.
Dirigente comunista há três décadas, Marighella sabia bem no início de 1964 o que significava ser perseguido por suas ideias. No primeiro governo do presidente Getulio Vargas, ele colecionou períodos de prisão em 1932, 1936 e 1939. Na última, amargou os cárceres de Fernando de Noronha e da Ilha Grande até 1945. No ano seguinte, foi eleito deputado pelo PCB na Assembleia Constituinte, mas o partido e seu mandato foram cassados pouco tempo depois. Em 1967, rompeu com o PCB e passou a organizar a resistência armada contra a ditadura. Foi executado em 1969 em uma via pública de São Paulo, durante uma emboscada organizada por Sérgio Paranhos Fleury, delegado do DOPS. A trajetória dele foi contada pelo jornalista Mário Magalhães no livro “Marighella – o guerrilheiro que incendiou o mundo”.
No grupo de mineiros que chegou ao primeiro escalão do governo federal, uma das ausências mais sentidas por ex-militantes é a de Carlos Alberto Soares de Freitas. A presidenta Dilma Rousseff, ainda candidata em 2010, fez questão de lembrar do amigo conhecido como Beto: “Para aqueles que caíram pelos nossos ideais. Eles fazem parte de minha história. Mais que isso: eles são parte da História do Brasil. Carlos Alberto Soares de Freitas, Beto, você ia adorar estar aqui conosco”, disse Dilma.
Beto estudou Ciências Econômicas na Universidade Federal de Minas Gerais. No mesmo ano em que entrou para a universidade, 1961, filiou-se ao PSB. Até 1965, militou no movimento estudantil e contribuiu na implantação das Ligas Camponesas em Minas Gerais. Nesse período chegou a participar das comemorações do terceiro aniversário da revolução cubana junto com Fidel Castro em Havana. Beto foi preso e desapareceu em 15 de fevereiro de 1971 e provavelmente levado à Casa da Morte, em Petrópolis. Em 2012 foi lançado o livro ‘Seu amigo esteve aqui’, da jornalista Cristina Chacel, uma biografia que resgata sua história.
O pesquisador Flavio de Campos lembra, entretanto, que com a aniquilação da luta armada a partir de 1975 os movimentos sociais e as correntes políticas precisaram se reorganizar. Com isso, vários quadros intermediários dos grupos de resistência à ditadura se incorporaram ao movimento sindicalista criado no ABC paulista e, com o tempo, acabaram por ganhar mais protagonismo que outros nomes conhecidos da política dos anos 1960. “Os governos FHC, Lula e Dilma incorporam muitas dessas lideranças que se formaram nos anos 1960. Não tinham tanta expressão naquela época, mas depois trouxeram o aprendizado da luta armada e da prisão, para enfim valorizar a democracia”, analisa o pesquisador.
Colaborou Juliana Dal Piva