Brasília - Apesar de haver, de acordo com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 6,5 milhões de pessoas com alguma deficiência visual no País – 582 mil sem nenhuma visão –, estima-se em no máximo cem o número de cães-guias em atividade no território brasileiro. E não é por falta de interesse. Levantamento feito com base em dados fornecidos pelos principais meios voltados para a doação desses animais mostra que mais de 2,2 mil pessoas estão atualmente inscritas em programas do tipo, aguardando pela entrega de potenciais cães.
Os levantamentos incluem dados das ONGs Instituto de Responsabilidade e Inclusão Social (Iris) Cão-Guia, do Projeto Cão-Guia de Cegos-DF e da Secretaria da Pessoa com Deficiência do governo federal, que afirmam ter, respectivamente, 1.500, 300 e 470 deficientes visuais inscritos em seus programas de entrega de animais. E todos encontram a mesma barreira: ausência do dinheiro necessário para a manutenção e treinamento de cães-guias.
"É demorada a entrega porque trabalhamos exclusivamente com o dinheiro de doações", explica Lúcia Campos, coordenadora do Projeto Cão-Guia de Cegos-DF, citando gastos como local de treinamento, treinador, veterinário e alimentação. Assim como em outros países, no Brasil é impossível obter lucro com os cães, pois eles não podem ser vendidos: são sempre doados e, no máximo de dez em dez anos, precisam ser substituídos, já que só podem exercer a função no auge de sua saúde. Isso complica ainda mais o déficit de animais no País, pois quem precisa substituir o seu é priorizado em relação àquele que ainda não o recebeu.
Lúcia calcula o custo de treinamento de um cão, com duração média de dois anos, em valores que vão de R$ 30 mil a R$ 35 mil. Principalmente devido a isso, um total de apenas 42 animais foram entregues a 38 utilizadores em 15 anos de atividades da ONG. "Eu costumo dizer que é mais fácil no Brasil ganhar na Mega-Sena do que ter um cão-guia", brinca ela. "Por mais que tenhamos a estrutura para treinar 20 cães por ano, não conseguimos formar mais de quatro ou cinco. É o mesmo problema das outras ONGs e que leva o País a ter um déficit tão grande desses animais."
Além disso, não basta ser o primeiro na lista de espera para conseguir o cão. É necessário que, primeiramente, o animal seja compatível ao possível dono em termos de tamanho, mobilidade e até personalidade: o utilizador precisa ter um perfil específico, gostar de cachorro e também fazer avaliações psicológicas e técnicas para saber se realmente terá condições de tê-lo. "Além disso, ele tem de ser uma pessoa ativa e independente. Se ele não tiver segurança para, por exemplo, sair com uma bengala na rua, também não terá condições de ter o cão."
Devido à falta de centros de treinamento e de treinadores qualificados brasileiros, uma das formas mais efetivas adotadas há alguns anos no País foi a importação de cães do exterior. Érsea Maria Alves, 60 anos, que há cinco anos e meio ganhou a companhia de Toby, um labrador de pouco mais de 7 anos, lamenta o fato de o Brasil estar tão distante de dar essa realidade a um número minimamente aceitável de deficientes visuais. "Nos EUA, uma ONG consegue formar 200 cães por ano. Aqui, em mais de dez anos, o Iris conseguiu formar 20 no total. Ou seja, deveríamos e até poderíamos ter 1.500 cachorros em atividade, mas a falta de recursos, de ajuda, de doações, impede isso."
Visando mudar a realidade atual, há dois anos a Secretaria da Pessoa com Deficiência do governo federal instituiu o Programa Viver Sem Limites, com o objetivo de formar profissionais para atuar como treinadores e instrutores de cães-guias em sete centros de treinamento espalhados pelo País e, consequentemente, doar os animais aos interessados. O primeiro espaço, no Instituto Federal Catarinense, em Balneário Camboriú (SC), tem serviços prestados pela ONG Helen Keller e possui atualmente 48 cães em treinamento – 30 deles em fase final de aprendizado, prestes a serem entregues.
Com R$ 2,7 milhões investidos até agora pela Secretaria de Direitos Humanos, o programa prevê a aplicação de R$ 800 mil anuais em cada um de seus centros, a serem construídos em São Cristovão (SE), Manaus (AM), Limoeiro do Norte (CE), Urutaí (GO), Muzambinho (MG) e Alegre (ES). Apesar de ser uma opção a mais para deficientes visuais, usuários e ONGs veem com ressalvas o programa federal. Isso porque os centros estão todos voltados para cidades interioranas, distantes dos grandes centros urbanos onde a maior parte dos deficientes visuais vive.
"Se o cão for socializado na vidinha do interior, ele nunca vai ter entrado em um ônibus cheio, em uma rua movimentada. Então vai acabar ficando desorientado", avalia Lúcia, da ONG Cão-Guia para Cegos-DF. "O animal precisa ser socializado em uma cidade maior, tem de estar pronto para tudo."