Rio - Um pacto contra a violência que passe a responsabilidade sobre a Segurança Pública dos Estados para a União através de mudança na Constituição, e ajude o país a reduzir sua população carcerária.
Este é um dos legados que a negativa da Câmara à redução da maioridade penal, na versão votada terça à noite, deixará. Em entrevista por email, o Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, disse que prende-se mal no Brasil, defendeu debates sobre a descriminalização de drogas, flertou com a privatização de serviços em presídios e deixou claro que a privação de liberdade só deve acontecer em casos extremos. “O mundo já sabe que prender mal gera custos, e mais violência”. Confira.
O DIA: Qual a importância da não aprovação da redução da maioridade penal pela Câmara na noite de terça-feira?
JOSÉ EDUARDO CARDOZO: Significativa, embora não se diga que a discussão está sepultada (ontem, uma manobra do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, recolocou outra emenda em votação, punindo apenas crimes com morte e estupro).
Mas acredito que esta resposta se deu a partir de uma reflexão sobre as consequências maléficas que a redução traz. Além de ser uma questão jurídica polêmica, que acabará nos tribunais, porque ela viola cláusula pétrea da Constituição e não poderia ser feita por emenda. Há estudos no mundo mostrando que sempre que se reduz a maioridade, há aumento da violência.
Ou seja, quando trato jovem como adulto e aplico a lei penal, faço com que estes jovens sejam postos em unidades prisionais junto a adultos, cortando a chance de recuperação. Os presídios, em sua maioria, têm a presença do crime organizado. Este jovem que praticou um delito vai entrar lá e sair com um potencial de delinquência muito maior.
E tem também a questão do sistema prisional brasileiro, com mais de 220 mil vagas de déficit, superlotados, com taxa de ocupação de 160%. Temos mais de 400 mil ordens de prisão que têm de ser cumpridas! Se somar, preciso de mais 600 mil vagas hoje, um outro sistema prisional. Mesmo que eu tivesse dinheiro para construir presídios alucinadamente, e preciso de quatro anos para entregar uma unidade nova, as cidades não querem presídios por perto.
Seria a hora de uma agenda propositiva sobre como o Estado, e a sociedade, tratam menores?
Sim, e ela passa por um melhoria do sistema de unidades que aplicam medidas sociocorretivas. Inclusive muitas delas são iguais a presídios, fazem violações e impedem a recuperação de jovens. Qual o caminho? Melhorar as unidades. Temos exemplos como a do Acre, onde visitei uma casa em que o índice de recuperação é de 80%. Situações deste tipo é que devem ser objetos de investimento do Estado.
O senhor defende o projeto no Senado que revê o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) e prega aumento no tempo de internação ?
Sou a favor, sim. O governo tem defendido uma melhoria do ECA sob dois aspectos: o prazo de internação previsto é muito baixo quando se pratica crimes hediondos com violência, e esta retenção tem que ser feita não só para que a sociedade não tenha agravamento da situação, mas também porque tenho que melhorar o atendimento deste jovem para que ele possa se recuperar: se eu casar internação com medidas sociocorretivas bem aplicadas, tenho bons resultados. Então, é melhorar o ECA e investir mais nas unidades para que não tenha um sistema tão desvirtuado e perverso como o atual.
O senhor já disse que o sistema carcerário é medieval. Como o Ministério da Justiça pode minimizar este problema?
Vamos deixar claro que o governo federal tem apenas quatro presídios de segurança máxima, e está construíndo o quinto. Todas as outras unidades prisionais são estaduais, e embora existam exceções, a maior parte é violadora de direitos. Não recuperam, permitem que o preso seja cooptado por organizações criminosas.
E são sim verdadeiras escolas de criminalidade, podendo ser comparadas a masmorras. Tenho sido muito criticado quando digo isto, mas quem está na vida pública tem que ter um compromisso com a verdade. Que a sociedade brasileira tenha clareza de que este é o lado perverso do sistema prisional. Temos que colocar luz sobre ele para saber o que precisa ser mudado, construir mais unidades prisionais — e a presidente Dilma já faz isso —, e fazer o que outros países têm feito, que são medidas penais que permitam que a pessoa sofra a sanção sem necessariamente perder a liberdade (...) Prender, só em casos estritamente necessários.
Dou um exemplo. O Brasil é o quarto país em população carcerária — perde apenas para EUA, China e Rússia. Todos estes países estão reduzindo sua população carcerária e sabem que prender mal gera violência e custos desnecessários ao Estado. Optaram por formas mais eficazes, como penas alternativas e monitoramento eletrônico. O Brasil, em vez de reduzir, tem crescido sua população prisional. A Rússia diminuiu em 25%; o Brasil aumentou em 33%. Isto mostra que o encarceramento em si não gera a redução da violência (...)
No terceiro debate sobre maioridade, promovido pelo DIA e Meia Hora, no Circo Crescer e Viver, um dos participantes lamentou que o mesmo governo que defende a não redução, deixa de investir em políticas preventivas de inclusão social. Deu como exemplo o corte contínuo das verbas do Ministério da Cultura e o investimento na ‘máquina de segurança’. O que o senhor acha disto?
Temos que olhar a realidade como ela é. É evidente que todo ministro gostaria de ter mais verbas para suas políticas, eu também gostaria, mas temos que ser solidários com o que é necessário para a economia brasileira.
A equipe econômica tem feito as medidas necessárias para que possamos ter equilibrio fiscal e estabilidade. Se o dinheiro não existe, temos que respeitar a realidade, tenho que ser solidário com aqueles que dirigem a economia do país para termos estabilidade e continuidade do desenvolvimento social dos últimos tempos.
Recentemente o Secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, disse à revista ‘Época’ que a Guerra às Drogas está perdida. Está mesmo?
Primeiro, não me agrada esta expressão, eu prefiro enfrentamento às drogas, porque eu tenho que diferenciar duas questões: o traficante, efetivamente, tem que estar submetido à organização penal. Então quando eu falo em guerra às organizações criminosas, acho que existe algum sentido em usar esta expressão.
Agora, em relação ao usuário, dependente químico, não se trata de guerra, trata-se de buscar um tratamento de saúde, a reinserção social desta pessoa. Ou seja: para o traficante o rigor da lei penal; para o usuário, a aplicação de políticas de saúde e sociais. Eu tenho que distinguir isto. Acho a fala do Beltrame desesperançosa, e ela não serve à nada.
Políticas públicas como as de Portugal apontam para a descriminalização do uso de drogas, e da troca do foco de segurança para o de saúde...
São atividades complementares. A Segurança Pública tem que agir em relação ao traficante, em reação à organização criminosa; a Saúde tem que cuidar do usuário. Portanto, são medidas complementares como temos defendido (...)
Do ponto de vista da descriminalização, uma questão mundial, acho que é necessário aprofundar este estudo, fazermos uma reflexão e acompanhar aquilo que acontece no mundo, ou seja: temos que verificar os malefícios e benefícios destas medidas antes de tomar posturas dogmáticas. Este debate está sendo feito, o governo federal tem acompanhado estes estudos e realizado pesquisas.
O que não podemos é tomar posições passionais ou dogmáticas, mas acompanhar os resultados para que possamos ter as melhores políticas (...)
Chegou a hora de a sociedade e o governo buscarem um pacto contra a violência para tentar reduzir os homicídios?
Estamos desenvolvendo um projeto. O Brasil tem índices de violência inaceitáveis. Eu diria que nenhum estado brasileiro, hoje, possui um padrão ajustado de violência, e isso se mede pelo número de homicídios, altíssimo. Nós temos lições de boas práticas que podem ser replicadas por todo o Brasil, como o ‘Brasil mais Seguro’, em Alagoas, que era o estado mais violento do país, e por força deste programa, há três anos, já não o é mais.
Pretendemos discutir todas estas questões com os governadores. Temos que lembrar que a segurança pública é questão atribuída aos estados, e não ao governo federal, para fazermos um grande pacto nacional de redução de violência. Este pacto será de políticas sociais focadas e estamos em fase final de elaboração do plano, que também engloba uma mudança na Constituição para que possamos dar um protagonismo maior à União na segurança pública em relação ao que existe hoje.
O que o senhor acha da privatização de penitenciárias?
É uma questão muito polêmica, e ainda está em estudo no Depen (Departamento Penitenciário Nacional). Não tenho posição dogmática em contrário, mas precisamos ter uma demonstração de que o custo-benefício será bom, desde que se fale apenas na hotelaria do serviço. Este pode ser privado, e não a segurança, porque ela é indelegável.