Por bferreira

Rio - Por que acredito ser o humano dotado de uma potência vital, energética, que alguns denominam espírito? Porque quando ouço a mulher do cinegrafista, cujo cérebro foi explodido pelo black bloc, dizer que ao entrar no CTI percebeu que o marido não estava mais ali, ou seja, no corpo, estou diante de uma declaração que confirma essa existência que vem da mente, das emoções, da psiquê de cada um de nós. Ela conhecia a potência imaterial de seu homem, o abstrato que ela atesta existir agora, diante da ausência de tal força. A negação impactante, “meu marido está indo”, tenta descrever a transição do ser para o vegetar, condição do corpo sem o poder de sentir. Santiago não mais é, porque já não sente; não devolve essa carga que vai dela para ele.

E ela usa mais duas palavras decisivas: união (“éramos uma família unida”) e amor (“falta amor no mundo”), que são pistas para os imateriais laços, que ela sentia interrompidos ali. A união era a conexão sentimental, que ia e vinha, dela para ele, e que agora, ali entre tubos e máquinas médicas, só ia dela e não voltava daquele corpo. De repente, o fluxo estancou explosivamente, e ela estava a vagar, como se procurasse o tal fio da meada. O caminho foi interrompido, e ela a ter que percorrê-lo, solitária, até o fim da vida.

E ao lado dela, tonta, outra ainda mais tonta: a fada Sininho, tão travessa e irritadiça (e cegamente fiel) como a do Peter Pan. Como seus meninos foram apanhados em travessuras, ela rosna para os jornalistas, chamando portanto o próprio explodido de carniceiro. Cinegrafistas, repórteres, donos de jornais, todos atrás da carniça em que o cérebro de Santiago se transformou. A carne morta, atraindo abutres, hienas, diabos e vermes. A putrefação da esperança dos protestos pacíficos, a não demonização de toda uma classe de profissionais, assim como devem existir todos os tipos de black blocs. Estes, agora com o filme tão queimado quanto o crânio do cinegrafista, escutam sua fada oferecer advogados e bradar pela integridade física do preso. Não se preocupe, querida: somos os primeiros a fiscalizar, porque pensamos numa sociedade justa, onde certamente chegamos a concordar com você em alguns pontos, mas parece que discordamos no ponto fundamental: não queremos a batalha campal, não queremos as mortes, nem meninos pretos e pobres amarrados nus em postes, porque não acreditamos em justiceiros com as próprias mãos. Destes corpos putrefatos, torçamos para a combustão do fogo fátuo, que sairá das entranhas desta terra do nunca, e nos perseguirá, só para nos lembrar que os grandes perdedores somos todos nós.

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