Por bferreira

Rio - Quando a porta-bandeira roda no seu mastro o retângulo de pano, os ventos vão buscar os ancestrais negros divinizados, fundadores daquele axé de samba, para que as boas energias viajem pelo espaço e abençoem os que por ali festejam a continuidade do antigo esforço.

Sofrido porque no início só tinha aquilo lá, o terreno de chão de terra batida, como opção de lazer. Hoje mudou? E os pretos dançavam e cantavam sua poesia maravilhosa, iniciando a deslumbrante linhagem das Escolas de Samba. Dentre as belas e elegantes senhoritas do morro, quem poderia empunhar tal glória, carregar o símbolo do poder que move forças soberanas? Começava o seleto grupo de mulheres rainhas, em cujas costas pesaria 50% da nota do quesito, único a pesar total sobre duas pessoas, no mar dos tantos mil que desfilam no grande dia. Os outros 50% eram do melhor bofe negão da comunidade, capoeirista, malandro, reprodutor temido, sedutor só por existir e rodopiar. Embaixo do leque chique francês, afrescalhado, a navalha para amedrontar ou rasgar a cara do inimigo da outra agremiação, que em batalha campal pretendia derrubar a bandeira que simbolizava toda uma nação de samba.

Tudo forte. Assim são os códigos de negritude que vieram bater nestas montanhas cariocas. E porque chora Wilma Nascimento, o Cisne da passarela, ao batizar na praça de alimentação da Sapucaí (parabéns, Riotur), neste último sábado à tarde, as crianças do projeto carioca e paulista das escolinhas de mestre-sala e porta-bandeira mirins? Porque do alto de seus anos, a bela senhora recebe toda a herança arrepiante das 60 bandeiras infantis rodopiando ao mesmo tempo. Muito vento, muita energia revolvida e o filme rebobinando todo na cabeça da divina matriarca. Sua bisneta já está faceira a rodar pelos desfiles. Suas lágrimas encontram o suor do líder e sobrevivente lutador Manoel Dionísio, que não deixa a peteca cair e há mais de 30 anos oxigena a renovação dos casais na maior festa popular. Uma vez na vida todos os cariocas deveriam dar uma passada por lá e ver o trabalho. Tipo atração turística mesmo, aquilo é Pão de Açúcar e Cristo Redentor juntos. Quando Dionísio e Wilma se juntam, a gente acredita mais que precisa continuar batalhando pela valorização de nossos pequenos sambistas. O mundo treme ao lado da pista, em pleno meio do ano. Força que não se esgota nunca, os panos continuam a soprar poesia e riscar nosso cotidiano de prazer. São mastros-lanças de resistência, são talabartes que suportam as dificuldades do mundo, são rodopios de grande beleza que tornam leve o peso de viver neste Brasil racista.

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