Já vivi sensações parecidas: tesouros sem arcoíris, pérolas livres das ostras, tudo à vista só esperando você
Por bferreira
Rio - Um azul de outono tinge o céu carioca. Faz calor. É a muda, lagarta e borboleta, primavera em graus de verão no Rio De Janeiro. A quentura é sintomática, temperatura de exageros, mas a cidade permanece brisa com os oitis fazendo a sombra do meu caminho. O percurso atravessa uma rampa do Aterro. Passam poucas pessoas sobre o trânsito sufocado de fim de tarde. Esses novos horários enganariam até Galileu em suas descobertas.
Aliás, como me surpreendo todos os dias com o luxo e pecado desse balneário abaixo do Equador. Aponto pro Palácio do Catete, um belo jardim público, paisagem de interior onde já se esgoelou o alto poder do país. Só restam o som do suicídio e a saudade de Ciro Monteiro, vizinho à Rua Silveira Martins. Estou na esquina, esperando o sinal. Reparo a beleza austera do Hotel Novo Mundo. Um saguão de histórias. Foi num dos seus aposentos que, após marcar o milésimo gol, Pelé foi dormir o sono dos justos. Algumas reformas justificam o batismo fiscal escrito em latão no mármore marrom. Entro. Pergunto a respeito do piano bar, coisa e tal, e apontam pro jirau:
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— Hoje é o maestro Osmar Milito com Paschoal Meireles, Alex Rocha e a cantora Leila Maria. Pescoço esticado, me debruço sobre a ansiedade e consigo aguçar alguns acordes. O gerente finaliza:
— Fique à vontade pra subir, não cobramos couvert artístico.
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Rio de Janeiro. Li que foi Coelho Neto quem a chamou de maravilhosa e inspirou André Filho a compor a marcha que encerra os nossos bailes de Carnaval. Mais: é o hino que nos emociona nas cerimônias oficias, no salão de um Itamaraty de subúrbio, na final da Taça Guanabara. Essa mulher, cantada por Noel e Paulo da Portela, comemora 450 anos em março próximo, e continua esbelta, cocota, descolada e eterna feito a garota de Ipanema. Misteriosa, a cidade me escondia uma tatuagem musical: o piano de Osmar Milito.
Meialuz, escuto standards americanos tabelando com Baden Powell e Paulo Cesar Pinheiro. Leila e sua voz Billie numa bela versão de ‘Al Of Me’, dicção do Harlem na Praia do Flamengo, ecoando glissados no contrabaixo e sutis vassourinhas na caixa da bateria. De alma lavada, tomo o rumo de casa. Já vivi sensações parecidas: tesouros sem arcoíris, pérolas livres das ostras, tudo à vista só esperando você entrar. Foi assim com a Rua Jogo da Bola, a vila de casas da Júlio Fragoso, em Madureira; o Beco do Rato, na Joaquim Silva, as sardinhas da Miguel Couto. Vivo de véspera, notas brancas na partitura. De encantos mil, fecho a crônica entre trombones e serpentinas: “Coração do meu Brasil”.