Devemos a um gringo, o britânico Misha Glenny, um bom retrato do lado mais perigoso do Rio. Ao contar a trajetória de Nem da Rocinha, trabalhador e pai de família que se tornou o maior traficante de sua época, Glenny mostra como as drogas mudaram a cara da cidade a partir dos anos 80. Nem entrou para o crime no ano 2000, aos 24 anos, quando não tinha dinheiro para o tratamento médico da filha. Pediu R$ 20 mil ao então chefe do tráfico local. Em troca, ofereceu sua força de trabalho. Inteligente, bom estrategista, cavou seu espaço e a sepultura de muita gente.
Contando também a própria história da Rocinha, onde chegou a viver em 2014, ‘O dono do morro — Um homem e a batalha pelo Rio’ é leitura obrigatória para quem quer conhecer mais sobre a delicada relação entre traficantes, policiais, políticos, governos e, claro, o próprio povo carioca. Glenny conhece o submundo. Para escrever ‘McMáfia’, um de seus livros anteriores e que vai virar filme, viajou o mundo para investigar o crime organizado global. Troquei uma ideia com ele via e-mail.
Podemos ficar otimistas quanto ao Rio?
“A esta altura, o futuro está imprevisível. O caos dentro da elite política, o padrão de vida caindo e os casos da grande corrupção têm colocado o Brasil na depressão profunda. Isso pode significar um acréscimo do poder das facções e, como consequência, na violência na cidade. Eu acho que até o fim dos Jogos Olímpicos, a situação no asfalto vai ficar tranquila. Os traficantes querem vender tantas drogas quanto possível aos turistas estrangeiros e domésticos. Para ter um lucro máximo será necessário diminuir a violência. Eu não estou tão certo de que a situação dentro das favelas vai ficar tão calma”.
A legalização do uso de algumas drogas melhoraria a situação?
“Com certeza. A liberalização do uso das drogas se espalha lenta mas constantemente em vários estados nos EUA. O sistema da “Guerra das Drogas” está colapsando no país onde foi inventado. Em 2015, no Colorado, o governo conseguiu recolher US$ 76 milhões em impostos sobre a maconha, duas vezes mais que os impostos sobre o álcool. E a civilização ainda não tem desaparecido. Durante os dez anos que vêm, eu acho que a legalização de maconha vai acontecer na maioria do mundo ocidental, e a discussão sobre a descriminalização da cocaína terá começado”.
Quem realmente ganha dinheiro com o tráfico?
“Tem muitas pessoas que ganham dinheiro com o tráfico, desde carteis na Colômbia até os delegados nas cidades norte-americanas que têm um incentivo financeiro para prender tantos usuários de drogas quanto possível. Nós sabemos que os bancos como HSBC estavam envolvidos na lavagem de dinheiro dos lucros dos carteis mexicanos. Cada pessoa tem o preço dela, e drogas pagam muito”.
O projeto das UPPs tem salvação?
“As UPPs foram um projeto corajoso durante alguns anos. Não estavam perfeitas, como mostrou o caso de Amarildo na Rocinha, mas, na maioria dos casos, seguiu-se um período estável à instalação da UPP. Infelizmente o que não funcionou foi a instalação da chamada UPP social. O estado não consegue ganhar a confiança dos moradores, se ele for representado só pela polícia. Tem que oferecer outros serviços também como saneamento, educação e hospitais. Agora o estado das UPPs está piorando cada vez mais porque os cortes no orçamento de segurança dão espaço aos traficantes para ganharem mais poder. Você não pode tomar medidas tímidas para um projeto como a UPP. Se você perde a confiança da comunidade, não tem como”.
Como o Estado pode intervir e marcar presença numa comunidade gigante como a Rocinha?
“Intervir na Rocinha é um desafio logístico. Quando eu estava morando na Rocinha, ficou bem claro que a polícia controlava as entradas principais, a Estrada da Gávea e Barcellos, o centro comercial da favela. Mas se eu andasse na periferia da comunidade, depois de uns cinco minutos eu encontrava os caras da ADA com fuzis e pistolas. Naturalmente eles achavam que eu era um gringo estúpido (com razão) que se perdeu no caminho. Os dois lados entendiam que tiroteios e conflitos não trazem benefícios a ninguém, portanto até há pouco tempo eles ficaram na área deles. Para realizar as metas de longo prazo da UPP o Estado precisa de muito tempo e muito dinheiro. É uma boa ideia, mas sem os recursos o Estado teria grandes dificuldades a implementar o projeto”.
Há solução para a corrupção envolvida no tráfico?
“Se existe uma grande procura de um produto ilegal, então a venda do produto resulta em lucros enormes. Isso é uma regra inquebrável da economia. Na situação onde os representantes do Estado, os policiais, beiram um estado da pobreza, então a corrupção é quase inevitável, especialmente num país como o Brasil, onde todo mundo sabe que a elite política e industrial frequentemente mostra a ganância sem limites – o Petrolão não surpreendeu ninguém. Aliás, você tem que escolher: violência, consumo das drogas e corrupção no nível elevado ou não. E para atingir o último, você tem que reduzir os lucros do negócio das drogas”.
O tráfico carioca está muito ligado a cartéis internacionais ou não?
“Muito pouco. Com certeza o crescimento no consumo das drogas no Rio foi uma consequência de um processo nos anos 80, quando o Brasil passou a ser um país mais importante no trânsito das drogas de Colômbia, Peru e Bolívia para Europa. Mas hoje em dia a cocaína que chega no Rio vem primeiramente pelos matutos, individuais que transportam a droga como uma pequena empresa. Os carteis internacionais são organizações separadas com muito mais dinheiro que um dono do morro carioca e que tem riscos de negócio muito diferentes do que os donos aqui. Frequentemente eles são de classe média com muito mais recursos financeiros e logísticos do que as facções na favela. De vez em quando você pode encontrar alguém que trabalha nos dois setores como o Fernandinho Beira Mar, por exemplo”.
Existe, de fato, uma política séria de combate internacional ao tráfico? Ou é apenas um jogo de cena?
“Existe. Mas enfrenta inúmeros obstáculos. Nos muitos países tem se desenvolvido uma conexão profunda entre alguns políticos poderosos e vários tipos de crime. Os criminosos buscam o ponto fraco do Estado para influenciar as instituições como a justiça, a polícia e a legislativa. Eu não quero citar nomes, mas alguns políticos no Brasil me parecem como chefes clássicos da máfia. Não é um jogo de cena mas é um jogo com dois adversários sérios”.
Você retrata o Nem como um sujeito articulado, inteligente e empresário. A quem um líder como ele se reporta?
“Eu não diria que o Nem se reportou a ninguém. No entanto, isso não significa que ele não teve que se comportar cuidadosamente com várias personagens no submundo. Mas quando a ADA tinha se consolidado na Rocinha, ele foi ao auge do sistema do poder, mas só se ficasse na Rocinha. Fora da favela ele era vulnerável porque o Comando Vermelho e TCP o consideravam inimigo e a polícia, também. Existiam relações entre ele e organizações como o PCC em São Paulo, mas essas eram comerciais”.
Nem fez muitos inimigos. O que o faz ainda estar vivo?
“Na Rocinha ninguém tocaria ele. E agora ele fica na penitenciária federal em Porto Velho. Até hoje nenhum preso no sistema das penitenciárias federais foi assassinado e, enquanto ele ficar lá, estará seguro”.
Os operários do tráfico sabem que seu futuro, em geral, é a cadeia ou a morte precoce. Por que insistem nesse tipo de atividade?
“Porque o mundo não oferece a eles nenhuma alternativa, e o mundo que eles conhecem é cheio de violência, de injustiça, de pobreza. Eles assumem que a vida é curta e são determinados a extrair o máximo, custe o que custar. A permanência da pobreza como um fato da vida nas cabeças de muitos brasileiros fortalece o sentido de que isso é um estado natural. Mas não é”.
Você arrisca a dizer qual o futuro do Nem?
“Ficará ainda muito tempo na cadeia. E depois eu espero sinceramente que ele volte à Rocinha para fazer alguma coisa positiva e longe do negócio de drogas”.
Já está escrevendo o próximo livro?
“Agora? Nenhum. Preciso de uma pausa. Mas meu livro “McMáfia” está sendo filmado como ficção, o que é muito empolgante. E é possível que “O dono do morro” também vire um filme”.
Nelson Vasconcelos é jornalista