Daniel Guanaes Divulgação

É sabido que as religiões, com seus enredos milenares, são instituições fomentadoras de reflexões que moldam o comportamento e os hábitos dos seus adeptos. Entretanto, não são apenas estes os que podem desfrutar de sua sabedoria. Ainda que pertencentes a tradições específicas, as histórias transmitidas por séculos ou milênios por determinados grupos são capazes de oferecer princípios práticos cujos benefícios alcançam mesmo aqueles que não subscrevem seus sistemas de crenças.

É o caso da história da criação do mundo registrada no Gênesis, o primeiro livro da Bíblia Sagrada. A narrativa, geralmente usada por muitos em discussões sobre literalidade ou não da origem do universo, pode ser lida também sob o prisma do estabelecimento de um calendário propulsor da vida. Uma espécie de texto que leva os seus leitores a perceberem como novos ciclos existenciais começam quando resolvemos colocar ordem no caos.

O texto descreve o estabelecimento da ordem, a partir de uma convocação divina, em um universo disforme e caótico. Ele narra não apenas o que Deus faz em sete dias, mas como Deus faz os sete dias. No hebraico, idioma original da narrativa, o que se encontra é uma cadência própria das poesias, com sequências rítmicas formando estrofes que terminam da mesma maneira: “tarde e manhã, primeiro dia”, “tarde e manhã, segundo dia”. Assim segue a canção até o sétimo dia.

A estrutura do que chamo aqui de poesia da criação é interessante e, no mínimo, provocadora. Isto porque geralmente contamos os dias da forma inversa. Falamos sobre manhã, tarde (e noite), primeiro dia. Afinal, a nós os dias são quase sempre encarados como marcadores automáticos de um tempo que vai. Ao autor do texto, no entanto, os dias são o registro simbólico de uma ordem que vem. A contagem da noite para o dia (tarde, manhã) é metáfora da vida como uma jornada de ciclos que se propõem das trevas para a luz.

O texto do Gênesis, sagrado a determinadas tradições religiosas, nos serve a todos como modelo propositor de um calendário. Não no sentido de nos dizer o que fazer, mas no papel de sugerir como fazer. Sejam quais forem as nossas escolhas, é importante sermos lembrados que nossos ciclos serão mais bem vividos sempre que a agenda que criarmos nos tirar do caos e da desordem e nos levar à harmonia e à ordem.

Inauguramos um novo calendário. Do ponto de vista da sequência cronológica, continuaremos a nos referir a cada ciclo de 24 horas como uma pequena jornada de "manhã e tarde, primeiro dia”. Da perspectiva do curso da nossa existência, entretanto, podemos buscar a sabedoria de fazer com que estes mesmos ciclos de 24 horas sejam criados por nós de tal forma que nos possibilitem a revivência da metáfora “tarde, manhã… cada dia”. Viverá melhor quem se dispuser a, a partir de si, colocar ordem no caos.
Daniel Guanaes é teólogo e psicólogo. PhD em Teologia pelo Departamento de Teologia, Filosofia e História da Universidade de Aberdeen, na Escócia. Pastor na Igreja Presbiteriana do Recreio - RJ