O silêncio do domingo cortava em mim qualquer alegria. Sou mulher de falas. Não gosto da quietude. O pensamento sempre foi inimigo meu. Causa dor. Causa lembranças incomodativas e medos do que virá. Então, não penso!
Como não penso, falo. Falo o que me vem. Sem limpezas. Sem cuidados.Dou a mim mesma o título de mulher autêntica. E, ao meu marido, o título de nada. Foi um casamento arranjado nos tempos em que a solteirice avisava falatórios. Eu sou a mais velha de outras três irmãs precipitadas no casar. Então, foi o que fiz. Caminhei Igreja adentro cumprindo as exigências.Foi festa rápida, sem muita alegria. E, inexplicavelmente, ele parece satisfeito.
Fiz o café antes dele. Café preto. Sem outros prazeres. Um café acordador. Acordada estava antes da hora. Detesto acordar cedo, mas cedo acordo.E fui ter com a rua. A cidade dormindo não me agrada.
Fechei o portão baixo que avisa que não se deve entrar e virei à esquerda. O úmido das árvores não me dizia nada. Nem os cantos de alguns pássaros adoecidos de insônia. Nem sei se há.
Virei, novamente, à esquerda e fui andar na rua de trás.Foi quando vi Arlete. Naturalmente, já nos conhecíamos. A cidade é pequena demais para esconderijos.Ela sorriu, convidando. Eu agradeci, dizendo pressa. Ela insistiu e algo na insistência me fez entrar.
A casa verde de Arlete era cheia de livros e de história. Foi o que consegui sentir. Eu comecei falando. Dizendo reclamações, minhas inseparáveis companheiras.Ela, ouvinte. Fiquei constrangida, em algum momento, com a atenção. E silenciei. Vi um livro entreaberto perto da poltrona em que ela descansava. Ela viu o meu ver. E comentou sobre o enredo.
Fiquei inquieta, depois acalmei. Arlete falava dançando. As mãos acompanhavam a voz. E as palavras eram ditas diferentes de mim. E a pausa. E o silêncio preparador do que vem depois. Vi uns papéis sem movimento, e ela disse que escrevia.Eu quis saber.Falou de histórias que ela observa. Do pensar. Eu reagi, "eu não penso". Ela sorriu entendendo ser descontração. Suspirou fundo e prosseguiu.Pegou um dos papéis e leu um poema sobre o descansar. "Eu não descanso", foi o que eu disse.
Tomamos um pouco mais de prosa e eu saí para casa.Não sei o que aconteceu. Não sei onde moram essas palavras que nos remexem. Mas, no caminhar, fui vendo o que não via, mesmo vendo sempre as mesmas ruas que via.
Meu marido passava a manteiga no pão e olhava com amor minha chegada. Sentei com ele. Beijei seu carinho. E agradeci.Comentei sobre um canto de passarinho e sobre as árvores tão bonitas quando amanhecem.Ele disse de um passeio. Eu assenti. Falei de um entardecer juntos. De um piquenique. Ouvi do texto de Arlete e aproveitei a palavra. Ele pareceu surpreso, e concordou.Descansei de mim olhando meu marido e pensando que posso pensar. Que, de dores, nascem vidas. Que alegrias também podem ser companheiras.
Na casa verde da rua de trás, moram alguns mistérios que só quem aceita entrar conhece.Entendi que a redenção estava na palavra. Eu que sempre fui do limpar, do preparar, do cozer, do fazer e do temer.Temi viver a vida sem conhecer.
Arlete mora na rua atrás da minha, mora na rua dentro de mim, adormecida. Justo eu que acordo tão cedo e que demoro a acordar.
Decidi pegar alguns papéis para ler e escrever o silêncio e os barulhos em mim. Culpa nenhuma tem o tempo que passou nem os que passaram. É em mim que a casa verde anuncia esperanças.