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João Batista Damasceno: Terceirização e trabalho escravo
A humanidade por vezes tende retornar à barbárie. A história recente do Brasil nos comprova esta possibilidade. Mas também reinventa sua história rumo ao horizonte
Ao fim da Idade Média o expansionismo português se estendeu ao mundo. O capitalismo comercial estabeleceu definitivamente a globalização. O Estado Português construiu fortificações em toda a costa brasileira, nas costas oriental e ocidental da África, na Índia, na China, nas Filipinas e outros lugares do Oceano Pacífico. Ao tempo da ocupação do Brasil, Portugal tinha uma população de dois milhões de habitantes. Quase metade rumou em direção às novas terras conquistadas em busca de riquezas.
Mas um problema se apresentou: quem trabalharia? Não seriam os fidalgos portugueses que se disporiam a lavrar a terra, escavar para tirar ouro, plantar cana para fazer açúcar ou a fazer os carregamentos dos fardos para encher os navios com as riquezas pilhadas dos povos dominados.
A história das sociedades é a história das lutas daqueles que são forçados a realizar os trabalhos com aqueles que se apropriam e gozam do resultado do trabalho. Assim foi a colonização do Brasil. Havendo demanda por mão de obra num reino tão vasto como o português depois das navegações, a aristocracia portuguesa lançou mão da escravização da população africana. Com esse propósito estimulou rivalidades, promoveu guerras entre povos e instituiu um largo comércio de pessoas pelo mundo.
Toda a atividade empresarial portuguesa no período das Grandes Navegações se fez com algum tipo de associação com a Inglaterra. O próprio surgimento do Estado Português coincide temporalmente com a conquista da Grã-Bretanha pelos normandos em 1066, dando origem à atual aristocracia e elite britânica. Portugal e Inglaterra constituem a mais antiga aliança entre nações que o mundo conhece. Até o padroeiro é o mesmo: São Jorge.
Se a América demandava escravização de pessoas para trabalho forçado, a Inglaterra cuidou de prover, tanto para suas colônias na América do Norte quanto para a América Central, do Sul e Antilhas. As cidades da costa oeste da Grã-Bretanha cresceram com seus portos exportadores de gente.
A voracidade da exploração exterminou a população indígena e escravizou pessoas da África para trabalhos nas minas e engenhos de açúcar. O capitalismo e a escravidão africana uniram-se num laço indissociável e propiciaram a acumulação de capital em grande escala. Assim, se fez mundial e transmudou-se de comercial para industrial. O ouro das Minas Gerais, cuja pilhagem foi obstada por Borba Gato, Felipe dos Santos e por Tiradentes, acabou nos cofres ingleses e acelerou o processo de industrialização daquele país.
Mas o sistema traz as suas próprias contradições. O desenvolvimento do capitalismo industrial demandou mercados e a Inglaterra, senhora do comércio internacional de pessoas escravizadas, passou a advogar a ‘libertação dos escravos’ a fim de constituir uma sociedade de consumo. A mesma Inglaterra que se constituíra e acumulara capital com a mão de obra escravizada demandava a mão de obra livre e assalariada propícia ao consumo das quinquilharias que produzia. O trabalho livre tornou-se mais lucrativo, pois a importação e manutenção da mão de obra escravizada demandava alto investimento de capital, constituía mercado consumidor e o trabalhador livre não demandava despesas com a manutenção de sua sobrevivência.
O trabalhador livre estava livre de tudo. Livre inclusive da possibilidade de ser proprietários dos meios para a produção. A Lei de Terras no Brasil, de 1850, impedia a ocupação de terra produtiva por quem não pudesse comprá-la. Foi uma forma de impor que algumas pessoas trabalhassem para quem as pudesse adquirir. Em discurso no parlamento alguns deputados imperiais chegaram a questionar a possibilidade de distribuição de terras aos pobres e perguntavam: se todos tivessem terra quem trabalharia nas suas?
A propriedade dos trabalhadores livres se constituía – unicamente - na força de trabalho, passível de ser vendida aos empregadores nos meios de produção que detinham. Empregador é quem emprega força de trabalho alheia em seus meios de produção. O trabalho é o que produz.
A ameaça dos trabalhadores organizados de tomar os meios de produção domesticou o capital e foi razão da regulamentação das relações de trabalho, fornecimento de bens e serviços indispensáveis à vida com dignidade e instituição do Estado do bem-estar social. Mas o neoliberalismo pretende o retorno do mundo do trabalho ao período anterior ao das leis trabalhistas. A Reforma Trabalhista que possibilita a terceirização, isentando de responsabilidade o tomador do serviço e empregador da mão de obra, expressa o retorno à exploração desmedida do mundo do trabalho.
A prática das vinícolas gaúchas em cujas propriedades foram encontrados ‘boias-frias’ em situação análoga a de escravos expressa o rumo que a relação capital-trabalho está tomando. Se o mundo do trabalho não reagir sua precarização poderá se acentuar. Houve reação da sociedade e os produtos das vinícolas chegaram a ser rejeitados em certas empresas comerciais.
A venda de suco no Armazém do Campo, que fica na Rua Mem de Sá, na Lapa, no Rio de Janeiro, produzido em cooperativas de trabalhadores do MST, portanto livres da precarização, chegou a aumentar 200%. A humanidade por vezes tende retornar à barbárie. A história recente do Brasil nos comprova esta possibilidade. Mas também reinventa sua história rumo ao horizonte.
João Batista Damasceno é doutor em Ciência Política (UFF), professor adjunto da UERJ e desembargador do TJ/RJ membro do colegiado de coordenação regional da Associação Juízes para a Democracia/AJD-RIO.
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