João Batista DamascenoDivulgação
João Batista Damasceno: 500º artigo, passando pelas jornadas de junho de 2013
Quem ocupa o trono tem culpa. É preciso que as responsabilidades sejam assumidas e ‘novos rumos’ traçados
Este é o 500º artigo que publico neste jornal, transcorrendo 15 anos. O primeiro artigo foi publicado em 3 de maio de 2008 e escrevi sobre o fenômeno da espetacularização dos julgamentos que se aprofundaria na sociedade brasileira. A prática se disseminou, resultando na Operação Lava Jato. Naquele artigo abordei o perigo do ajuste entre Judiciário, Ministério Público, polícia e mídia.
Outro tema abordado com frequência foi a militarização da política de segurança e extermínio de jovens pretos e pobres da periferia e favelas. Em junho de 2008, os jornais anunciavam que o Exército ocupava o Morro da Providência e que o governo federal havia recorrido da decisão judicial que determinara sua desocupação, porque as Forças Armadas não se incluem nos órgãos de segurança pública elencados no Art. 144 da Constituição.
A ocupação do Morro da Providência pelo Exército culminou com o sequestro e entrega de três jovens, que voltavam de um baile funk, a traficantes de um morro rival, onde foram torturados, executados e ‘desovados’ em lugar ermo distante. Tal como no ‘Mito de Cassandra’, que predizia o futuro, mas ninguém acreditava em seus prognósticos, não adiantou dizer sobre o que propicia a militarização da política de segurança.
Aqueles que retiraram os militares das Forças Armadas dos quarteis, e os colocaram em atividades policiais, foram os que os trouxeram para a política e colocaram para chocar o ovo da serpente que ameaçou as instituições nos últimos anos. Não basta que sejam nobres as nossas intenções. Quem tem poder de decisão precisa saber o efeito do que faz, precisa do indispensável senso de proporção, bem como senso de responsabilidade.
As crônicas registram ocorrências cotidianas e têm o desvalor do imediatismo, correndo o risco da excessiva subjetividade. Mas o pouco registro nelas contido possibilitam alguma reconstituição histórica. Analisando aquele período pelo retrovisor é possível perceber relatos do descontentamento de parcela da população com as políticas públicas divergentes das aspirações depositadas, até o surgimento das Jornadas de Junho em 2013.
A implementação de política de extermínio nas favelas e periferias, culminando com as ocupações militares, com Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) e decretação de GLOs (Garantia da Lei e da Ordem sob o comando das Forças Armadas), apenas oficializou o que o aparato repressivo do Estado, não desmontado com a redemocratização, continuava fazendo na periferia.
Desde 2003, os anseios depositados - visando a transformações sociais e dignificação do mundo do trabalho - foram frustrados e as políticas assistenciais, embora garantidoras do pão de cada dia, eram mero paliativo. Para garantir o circo foram direcionados vultosos recursos no patrocínio dos “Grandes Eventos” que prometiam legados. O Brasil se tornou destino de três grandes ocorrências desportivas sucessivas: Olimpíadas, Jogos Militares e Copa do Mundo de Futebol. Empreiteiras sorriam, mas a insatisfação popular era crescente.
A tentativa de demolição do antigo prédio que abrigou o Museu do Índio, para construção de shopping e estacionamento para a Copa de 2014, foi o aglutinador das insatisfações no Rio de Janeiro e propiciou as manifestações de 2013. Não foram os R$ 0,20, nem apenas o prédio notabilizado por Berta Ribeiro, Darcy Ribeiro e Marechal Rondon. Os motivos para as manifestações de 2013 também foram o descontentamento com os rumos que o país tomava, desde a escolha do presidente do Banco Central, gerando quebra das expectativas dos que empobreciam e tinham a vida precarizada.
Os setores progressistas, no exercício dos cargos, mas não no poder, colocaram-se como gestores da iniquidade. Enquanto assumiam compromisso com a “ordem” patrocinavam a desordem que empobrecia, torturava, executava e desaparecia com pessoas, a exemplo do Pedreiro Amarildo. Descrentes e com expectativas frustradas as massas reagiram à institucionalidade, via na qual depositavam suas esperanças.
Mas os “gestores da ordem”, compromissados com a ‘governabilidade’, não compreenderam a manifestação anti-institucional extremamente forte que emergia com pujança naquele junho de 2013 e tentaram sufoca-la. Incapazes de compreender a expressão popular, criminalizaram os movimentos sociais. Isto acentuou a desidentificação em curso e jogou a população para o lado daqueles que fizeram discursos antiinstitucionais que resultaram no terraplanismo, anticiência e nos atos terroristas de 8 de janeiro de 2023.
O descrédito no qual aqueles governantes mergulharam propiciou a aglutinação das massas em torno dos que entenderam a mensagem das manifestações e passaram a apregoar – oportunisticamente – o fim da política e dos poderes do Estado encarregado de políticas públicas.
Quem ocupa o trono tem culpa. Quando Édipo descobriu que a desgraça que se abatia sobre Tebas decorria do fato de ter matado seu pai e casado com sua mãe, não se desculpou alegando desconhecer sua ascendência. Furou os próprios olhos e partiu da cidade. Não adianta culpar os que ocuparam o vácuo deixado no seio popular. É preciso que as responsabilidades sejam assumidas e ‘novos rumos’ traçados.
João Batista Damasceno é doutor em Ciência Política (UFF), professor adjunto da UERJ e desembargador do TJ/RJ membro do colegiado de coordenação regional da Associação Juízes para a Democracia/AJD-RIO.
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