Ivanir dos Santos é babalawô e professor-doutor CCIR/CEAP/UFRJ/IFCSDivulgação

No Brasil, coincidência ou não, fato é que o dia de Ogum e o dia de São Jorge são celebrados no dia 23 de abril. Se por um lado São Jorge aparece, para tradições cristãs católicas, como o “Santo Guerreiro”, montado no seu cavalo, derrota seus inimigos e o temido dragão, por outro, Ogum aparece como o Orixá associado à batalha, grandes lutas e à guerra, clamado nos momentos mais difíceis para daquelas e daqueles que reconhecem e rogam por sua proteção.

Por muito tempo, e de uma certa forma até os dias atuais, os cultos e a devoção ao Orixá Ogum, no Brasil, era visto e encarado como uma das manifestações do sincretismo brasileiro que, ao longo dos séculos, foi se redesenhando e bailando com o catolicismo popular brasileiro. Entretanto, gostaria de aqui chamar a atenção e apontar essa devoção, em que “São Jorge vira Ogum e Ogum vira São Jorge”, como sendo uma das múltiplas práticas das resistências e sobrevivências cotidianas dos grupos religiosos de matrizes africanas que viviam, e ainda vivem de uma certa forma, sob a marginalidade social, cultural e espiritual imposta pela intolerância religiosa e pelo racismo à brasileira.

Marginalidade essa que foi forjada desde a gênese da construção da sociedade brasileira e que tem, como bem sabemos, a intolerância religiosa e o racismo com as bases de sustentação dos grupos privilegiados que se veem como a norma e a normalidade no contexto das heranças coloniais que ainda sobrevivem no Brasil.

Com brevíssimo passeio sobre a História da construção da sociedade brasileira é possível observar que as ideias, forjadas na Europa, sobre os eixos da intolerância, do racismo e desumanização das culturas, espiritualidades dos povos africanos subsaarianos deixaram marcas profundas em nossa sociedade e fortaleceram os processos de exclusão, preconceito sobre as práticas religiosas de matrizes africanas.

Assim, cá do meu canto, busco compreender as relações e manifestações de fé e devoção que “unem” os fiéis e devotos de São Jorge e Ogum, no dia 23 de abril, como um ponto de resistências ou como bem pontua James Scott “Um Discurso Oculto”, em que é possível aos marginalizados cultuar e manter os seus códigos de crenças através de ação simbólica em que é possível rezar para São Jorge e rogava para o Ogum. Destarte, ao observarmos as histórias de devoção no Brasil é possível perceber que que o culto e as devoções estão para além das conexões religiosas redesenhadas em solo brasileiro.

Seja o representante sagrado chamado e/ou identificado como santo ou orixá, nomeado de São Jorge ou Ogum, fato é que boa das pessoas que tem fé às representações sagradas ligadas à cultura cristã católica e/ou de matrizes africanas, se apegam à crença e pedem proteção em momentos difíceis ao(s) guerreiro(s). Outrossim, podemos concluir que rezar para São Jorge e/ou pedir proteção a Ogum é uma das múltiplas coexistências das devoções religiosas brasileiras. Coexistência esta que de certa forma significativa e expressam nossas identidades.
Assim, a data 23 de abril é um dia em que pedimos, rezamos, rogamos mas acima de tudo voltar nossos olhos para o fortalecimento da tolerância religiosa, compreendendo que o caminho que precisamos percorrer, para que cada pessoas possa ter os seus direitos religiosos resguardados, é independente da intenção da vela que pode ter sido acesa a São Jorge ou a Ogum. Ogunhê! Salve Jorge! Salve Ogum!
Ivanir dos Santosé professor, babalawô e orientador no Programa de Pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)