Há um silêncio no dia. Meus pensamentos estão mais pensantes que de costume.
Sou caminhador. E sou observador dos cenários que intercalam belezas e ausências.Sou dos que sonham em desviver momentos de irracionalidades. E sou dos que lamentam os ditos que ditam a dor nos outros e dos silêncios que não interrompem esses ditos.
Caminho pelas calçadas e penso. Enquanto penso, vejo cenas que me entristecem. E outras que me enternecem. Um homem deitado em uma calçada, onde vive, está abraçado ao seu cachorro.Um outro passeia com o seu. O cachorro do homem deitado se levanta, subitamente, e vai brincar com o cachorro passeante. O homem, que mora na rua, chama: "Duque, Duque, volta aqui". A cena é muito rápida. O cachorro vai com o rabo demonstrando alegria brincar com o outro. O morador se levanta da rua, preocupado, deve conhecer o outro homem. Quando um cachorro se aproxima do outro, o homem de pé se arma para chutar o cachorro intruso. O morador da rua implora: "Não, por favor, não! Ele é tudo o que eu tenho na vida". Chorando, o homem que vive na rua consegue pegar seu cachorro. No colo o abraça profundamente e chora: "Meu filho, já expliquei que esse homem é mau". O homem em pé ainda tem tempo de dizer: "Lixo", e prossegue.
Não sei se o dito se refere ao homem que mora na rua ou ao seu cachorro.Tenho vontade de dizer. De interpelar o irracional que fala. É tudo rápido, como disse. Ouço, ainda, o homem da rua cantando uma canção para o seu cachorro, agora protegido das irracionalidades. O cachorro fecha os olhos e, talvez, sem saber, agradeça. Penso "o que é o saber? O que sabe o homem que prosseguiu andando?". Ofereço ajuda. O homem aceita. Converso com ele. Peço perdão por interromper a canção, ele sorri para mim. Diz que tem fome. Estamos perto de uma padaria. Resolvo. Tão fácil resolver. Tão difícil resolver.
Ele diz que o homem que anda com o cachorro tem nojo de quem vive na rua. Que já machucou o Duque. Que falou que ninguém vai passar doença para o seu cachorro. Com os olhos gratos, ele explica que o Duque não tem doença, que é só brincalhão.
Eu queria ter convidado o desumano homem para sentir o que eu senti conversando com o Leo, o homem da canção, o homem do Duque. Eu queria que ele ouvisse a canção que eu ouvi. E que, talvez, acordasse dos seus desacordos. Ou dormisse a paz dos que não machucam.
Prossegui minha caminhada pensando na dor que um humano é capaz de causar em um outro humano. No poder de abrir machucaduras na alma. O chute dado e não acertado é simbólico. Os ódios que moram dentro se apresentam assim, nos desequilíbrios. O cachorro do desumano homem estava com o rabinho abanando, feliz com a chegada do amigo que mora na rua. Quem é o racional? Quem é o irracional? Quem enternece? Quem entristece?
Tenho muitos anos de caminhada e muitos anos de um dual sentimento em relação à humanidade.Caminho com irmãos meus que me perfumam de bondade e caminho com outros que interrompem melodias bonitas de dias bonitos de vidas bonitas.Teimo em desmentir o feio. O feio gesto arrogante. O feio gesto violento. O feio gesto de desamor.
Os humanos são os que, por serem racionais, mais deveriam compreender os sentimentos de todos os seres vivos. E de cuidarem para não causarem dor. Até porque sentem a dor e são capazes de dar nome a ela. O nome que dou ao homem passante é infeliz. Um infeliz em movimento. Um infeliz que causa dor.O nome que dou ao que vive na rua é carente. Carente, também sou. Tenho o que ele não tem. Nossas necessidades são diferentes. Tem ele o que eu não tenho, certamente. É assim nos arranjos humanos. Como seria diferente se nos ajudássemos, se nos comprometêssemos a cuidar. Cada um em sua caminhada, cada um nos cenários que estão mais perto.
Volto para casa cantando em mim a canção que fez o Duque dormir. Conheço essa canção. E conheço o seu cantador. O de hoje. O que teve a felicidade de espantar uma dor. Já valeu o seu dia. Já valeu o meu dia.