Meu marido estava na poltrona que dá para a porta da entrada da nossa casa.Eu estava sentada perto. Em um sofá comprado há muito. Nunca mudamos os móveis nos quase vinte anos de casados.
O olhar do meu marido era vago. Como se não estivesse naquela sala, naquela casa, naquela vida.No nosso silêncio, ouvíamosMaria Callas cantando "La Mamma Morta". Não sei a tradução da música inteira. Sei que Callas cantava todas as dores do mundo. As das tragédias das óperas que interpretava e das suas próprias.
Meu marido é de pouca fala e tem falado menos depois que a prima se foi. A prima que não é prima. Prima fosse, seria filha de uma das tias, irmãs do pai. A mãe era filha única. Conheço as tias, as filhas e os filhos das tias.Disse ele que a prima que nos visitou era uma prima longe.
Longe é ele de mim, mesmo morando juntos, mesmo dormindo juntos, mesmo fazendo o que fazem os casais. A frequência é ele quem diz. O quando e o como não cabem a mim. Se tenho vontade, aguardo. Se não tenho vontade, cedo.
A prima que não é prima enviuvou. E veio nos visitar. Eu nunca soube dela. Ficou um final de semana apenas, hospedada no quarto de hóspedes. As crianças não estavam em casa. As crianças que não são mais crianças estavam em viagem.
Meu marido parece sentir a música. Tenho vontade de puxar conversa, mas silencio. Fala, dentro de mim, o olhar do meu marido para a prima que não é prima. Nos vinte anos de casados, eu nunca me senti olhada daquela maneira. Nunca.
A prima falava, enquanto eu arrumava a mesa e colocava o que haveríamos de comer. A prima falava, enquanto comíamos. E falava, enquanto eu despedia as sobras e ajeitava as louças e os talheres que foram usados. Era sorriso demais para quem enviuvou há pouco. Meu marido era mais silêncio. Nada disse que dissesse alguma história que aconteceu ou que ficou por acontecer. Nem ela disse nada que dissesse algum passado ou algum futuro prometido em algum passado. Eram apenas palavras. Palavras nunca são apenas. Mas eram.
Ela ia emendando histórias de pessoas que eram desconhecidas, como se costurasse um agasalho de tempos em que eu não vivia na vida de meu marido. Não, o que me incomodava não eram as palavras ou as histórias ou o agasalho que imaginava, o que me incomodava era o olhar direto, sem o vagar costumeiro. O olhar do meu marido sorria para a prima que não era prima.
E, agora, enquanto Callas canta uma mãe que foi morta, o olhar do meu marido não tem sorriso algum. Quando foi que matamos os dizeres de amor? Quando foi que matamos os sentimentos que nos permitem sentir o que sente um, o que sente o outro?
Penso na posição da poltrona em que ele está sentado, tão perto da porta, tão perto do sair da casa.Penso que ele pode ir. Que ele deve ir. Ela enviuvou.
Converso comigo mesma dizendo o que devo dizer a ele e imaginando o que ele dirá a mim e as respostas que direi.E nada digo. Nenhuma palavra. Só a dúvida que descostura um agasalho que não agasalha. Até prefiro que ele vá. Tenho tempo ainda de conhecer alguém que me olhe como ele olhou para a prima que não é prima.
Mexo com as minhas mãos para disfarçar os meus pensamentos. Não que ele esteja me olhando. Ele pouco me olha e o que diz são os ditos dos cotidianos de quem vive junto.
Levanto para ajeitar a hora de dormir. É noite. Ele, então, se manifesta. Levanta, também. Desliga o som. Callas silencia aquela dor. Eu, não. Enquanto caminhamos para o quarto, ele me encosta do jeito que encosta quando quer aliviar os seus desejos.
Eu entro no banho e, enquanto a água cai sobre mim, penso no que ele haverá de pensar quando estiver em mim.Ele nunca me olhou como olhou para prima que não é prima, é essa a canção dura que se repete nas lembranças que não foram embora, quando a prima que não é prima se foi.
Coragem nenhuma tenho de dizer a ele o que digo a mim mesma. Se ele quiser ir, que vá. Se não quiser, que fique. Quando penso isso, penso a tristeza de ter me feito aceitando não decidir. Fecho a torneira do chuveiro e pego a toalha. E, depois, algum perfume. E, depois, ele. Foi assim que fui me acostumando.