O cheiro daquele tempo é ainda aconchego. O nome já era uma explicação, Dulce.
Dulce era a vizinha que cozinhava. Era a doceira que fazia os dias terem mais sabor. Havia uma varanda e uma primeira sala em que os doces ficavam esperando para dar prazer. As cidades vizinhas também vinham comprar os doces de leite, de abóbora, de figo, de laranja, as cocadas, a paçoca e os outros que eram cuidadosamente nascidos das mãos preparadas para o alimentar de sonhos. Também havia sonhos. E, também, havia as conversas.
Dulce não economizava no contar histórias. No explicar os ingredientes. No alimentar além da fome do corpo. O que me lembro, também, quando lembro o cheiro, são os bolos. E os bolos tinham palavras. Exatamente isso. A cobertura do bolo vinha com palavras de trechos de livros.
Dulce era uma leitora voraz. E gostava de falar de literatura. Das brasileiras Cecília, Clarice, Rachel, Lygia, Adélia, Nélida aos de outros cantos como Pablo, Miguel, José, Fernando. Fernando é o Pessoa. Adélia é a Prado.
Adélia iria gostar de conhecer Dulce. E Nélida Piñon teria gostado, também, tão conversadeira que era. Foi a primeira vez que ouvi a história do cavaleiro errante. Foi a primeira vez que ouvi sobre Guimarães e a terceira margem do rio.
Havia rosa no quintal de Dulce. Como não haveria? Dulce nasceu para o belo.
De casa, eu sentia o cheiro e ficava imaginando que palavras estariam escritas no bolo que crescia. As palavras nos fazem crescer. As palavras nos alimentam do doce da vida. Não digo das palavras que doem e que diminuem e que violentam sentimentos. Essas não tinham vez no crescer daqueles bolos.
Dulce também sabia sorrir. Um sorriso lindo. A outra vizinha, Carmen, dizia que não havia o que tirasse de Dulce a alegria. E até brincava com os seus dizeres sempre tão acolhedores dos dias. Gostava Dulce das chuvas e do sol. Gostava quando chegava o frio para usar as roupas de frio. Gostava dos dias de calor para que os filhos aproveitassem uma piscina improvisada em um tanque grande no quintal.

Joaquim, o primeiro nome de Machado, era o seu marido. Trabalhava como responsável pela Igreja de Santo Antônio, que ficava na parte alta da cidade, onde muitos casamentos eram realizados.
Antes de fazer os bolos para os casamentos, Dulce exigia conversar com os noivos. E dizer do que não poderia faltar para que não desandasse, para evitar os azedumes, para que não queimasse nem esfriasse.

No seu brincar, dizia do apetite do marido. Joaquim corava. Como se amavam aqueles dois! Eu já não morava na cidade pequena, quando fui às bodas de ouro de Dulce e Joaquim. Fui curioso ver as palavras do bolo. Era de Victor Hugo, "A suprema felicidade da vida é ter a convicção de que somos amados".
Eram pessoas simples nos seus cotidianos. Eram pessoas grandes nas necessárias compreensões sobre a vida.
O cheiro daquele tempo é ainda aconchego.