Minha mãe se foi há alguns anos. Sua única irmã. Vieram juntas da Síria. Cruzaram o oceano e a vida sem nunca desligarem as mãos. Mas um dia minha mãe foi viver a eternidade e ela ficou.
Ficou sem ficar. Uma parte se foi. Fiz de tudo para o reaprender da alegria. Choramos juntos, muitas vezes, lembrando do tempo em que estávamos todos. A mesa cheia. De presenças e de promessas de permanências. O tempo é senhor de si. Não nos autoriza o parar. Ela queria apenas a minha mão e alguns dizeres. Disse o meu nome e disse como dizem os árabes, "o filho de Anisse".
E, então, eu cantei o pouco que sei de uma música árabe. Ela cantou junto. Abrindo e fechando os olhos. E repetindo a mesma música. E dizendo novamente, "o filho de Anisse". Eu concordei e disse que era o filho dela também.
Minha tia Leila não teve filhos. Eu era seu filho. Desde que me lembro, eu a chamo de Lelê. Por uma razão linda. Eu ficava sentando em seu colo, enquanto ela lia para mim. Ela dizia que eu dizia assim, virando as páginas dos livros, ainda antes da compreensão das palavras, "lê e lê e lê e lê". O meu mundo foi preenchido por seus afetos. Foi alimentado pelo sorriso dela, da minha mãe, da minha avó, todas na cozinha cozendo o que fazia bem, o que faz bem.
Sentado ao seu lado, em seu último cantar, a infância inteira veio de volta. Eu fui dizendo do que fazíamos juntos. Da sua proteção. Do seu dizer orgulhoso que éramos, nós dois, poetas. Ela escreveu, um dia, uma linda carta a um bispo da sua igreja. E o bispo disse que a poesia dos seus escritos merecia um enquadramento. Nos quadros dos meus dias idos, há muitas permanências. Bendito seja o Inventor da memória.
Eu levei alguns alimentos para ela. Ela queria outro alimentar. Permaneceu deitada querendo a minha mão. Sorriu algumas vezes, enquanto eu dizia histórias engraçadas dos nossos dias passados. Abriu os olhos e me olhou tão bonito. A ternura daquele último encontro, três dias antes do seu partir, foi um presente para o aconchego da saudade que tem um compartimento pleno de despedidas em mim.
Falamos da minha infância e dos dias em que sentávamos para ver o mar. Falamos dos seus cuidados comigo. Eu fui dizendo nomes errados de primos, tios para que ela pudesse forçar o seu lembrar e gostar de me corrigir. Falamos do seu casamento com Antônio. Falamos do meu pai. E, então, ela chorou. "Seu pai era tão bom, tão bom, tão bom". Chorei, também. Meu pai, meu bom José.
Escrevo ainda antes de ir à minha Cachoeira Paulista para beijar o seu rosto e acompanhar o seu descansar eterno ao lado de tantos que há tanto vivem em mim.
O que é o viver? Um sopro entre os nasceres. Nascemos para o aqui e nascemos para o Mistério. Como saber o que vem depois? Só sei que vem. É no que acredito. E credito a minha crença aos plantios de fé dos que já se foram e nunca se foram.
Vou ouvir o sino triste da Igreja. A tristeza é também bonita. E é, também, ensinadora do viver aqui. E vou caminhar até o alto onde fica o cemitério. É para o alto que a vida deve viver. É para o Sopro do Amor que nos ensina o amar. O resto fica quando a terra encobre o corpo e descansa os cansaços.
Ela queria apenas a minha mão. E a minha mãe.
Como será o reencontro das duas irmãs? Como será a enlaçar das mãos? Como são as mãos da eternidade? Não sei. Ninguém sabe. Daí os véus que segredam o mistério. Não sei. Ninguém sabe. Só sei o que sinto. E o que sinto é que o reencontro está sendo lindo.
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