Trabalhei na Secretaria de Fazenda estadual (SEF) por doze anos que se somam aos mais de 30 anos na magistratura. Advoguei e exerci outras atividades ao longo da vida e no métier vi de tudo um pouco. A SEF, naquela época, era pior que a polícia daquela época. Lá, conheci um diretor que, mais que honesto, era incorruptível. Os funcionários honestos eram apontados. Não faltava quem dissesse: “Cuidado com o que se fala perto dele. Ele é dos honestos”. A honestidade era uma exceção e estigmatizada.
O diretor incorruptível desejava ser amado. Também tinha pendores literários. Fazia poemas, publicava e promovia noites de autógrafos, com coquetéis fartos. De vez em quando alguém elogiava um poema seu e ele se sentia Carlos Drummond de Andrade, de quem conhecia apenas uma parte de um poema que sempre recitava: “No meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho. Tinha uma pedra. No meio do caminho tinha uma pedra.” Era amigo de todos e para lhe cair nas graças bastava fazer-lhe um elogio. Gostava de pequenos presentes, por amizade. Nunca o que fosse de elevado valor; não aceitava. Um convite para um jogo no Maracanã enchia-lhe de satisfação. Considerava um convite para jantar ou para uma viagem um pacto de amizade eterna. No Natal adorava as lembranças dos “amigos”, fosse uma garrafa de vinho barato ou qualquer pequena bugiganga. Mandaram-lhe uma gorda cesta de Natal da Lidador.
Mandou devolver. Era coisa de valor excessivo e poderia esconder segundas intenções. Se alguém lhe chegasse com uma mala de dinheiro certamente receberia voz de prisão. Mas se derretia diante de uma simples “lembrancinha”. Mulher bonita o tirava da seriedade. Houve quem contratasse umas moças que diziam ser “estudantes, modelos e atrizes” para com ele despachar. Entre sorrisos e olhares ele carimbava todos os livros contáveis, dando por concluída a fiscalização. Mas era incorruptível. Nunca ninguém duvidou que jamais recebera ou receberia qualquer vantagem capaz de enriquecimento.
Num final de ano recebeu uma garrafa de vinho personalizada. O conteúdo deveria ser intragável, naquela época de restrição às importações. Uma garrafa só. Ele a mostrava a todos. Tinha o seu nome impresso. Um vinho pessoal! O doador fazia a contabilidade para uns empreendedores que, diziam, administravam uma banca de ‘loteria zoofílica’, também conhecida como ‘jogo do bicho’. Ele gostava de samba e chorinho. Se ouvia um clássico se emocionava. Pixinguinha o levava às lágrimas. E não faltava quem lhe presenteasse, em épocas especiais, com as bolachas de vinil, onde se gravavam os clássicos do estilo. Recebia o mimo com satisfação e prova do apreço que lhe era devotado e com a felicidade de uma criança que recebe um brinquedo desejado. Mas era incorruptível! Ninguém ousava supor que pudesse receber suborno. Tal atributo era reconhecido até pelos seus desafetos.
Certa feita recebeu um convite para um ensaio numa escola de samba. Durante uma semana falou da organização da escola, da alegria na quadra, da distinção lhe conferida etc. Descobriu-se sambista e ainda mais amado. E repetiu a ida, sempre convidado. Sem saber sambar, não se intimidava em dar uns passinhos e mostrava as fotos de sua atuação, rodeado de “amigos”, dentre os quais profissionais que atuavam no campo do Direito Tributário, Contabilidade, além, claro, de contribuintes sujeitos à sua fiscalização. Era amigo de todos, mas incorruptível! A data de seu aniversário era especial e a repartição vivia clima de festa desde a manhã. Seu gabinete ostentava uma mesa farta de comidas diversas e depois das 16h00 até era permitida bebida alcóolica. Whisky era um produto caro e raro. Numa das festas presentearam-lhe com uma garrafa verde, quadrada, de um uísque nacional. A euforia ficou por conta de um detalhe: a garrafa estava fechada; lacrada. Seria aberta naquela oportunidade para todos beberem. Um assessor saiu e arrumou gelo para a degustação daquilo que, se ainda existe, deve-se vender em qualquer botequim.
Decorridos anos eu o encontrei no Centro do Rio. Eu já advogava e, de terno, derretia num calor de março. Ele já não era diretor. Paramos num bar na Avenida Rio Branco esquina com Rua do Rosário, lateral da Igreja Nossa Senhora da Conceição da Boa Morte. O bar era tão estreito que os clientes ficavam em pé na calçada e eram servidos no balcão. Enquanto éramos atendidos ele me mostrou umas fotografias e falava do carnaval no recém-inaugurado Sambódromo, projetado por Oscar Niemeyer com cálculos estruturais de José Carlos Sussekind. Aquela obra desmontara o esquema de montagem e desmontagem de arquibancadas que se faziam em todo carnaval e por isso foi tão criticada por quem se enriquecia com tal atividade. Ele não conseguira ingresso para camarote ou arquibancada. Mas como tinha “amigos”, arranjaram-lhe um colete da equipe de apoio e ficou na pista, tal como se fosse um dos trabalhadores que empregavam a força bruta enquanto os demais se divertiam. Ele ria da própria esperteza e do “jeitinho” que arrumara para assistir aos desfiles. Fiquei com pena daquele homem incorruptível. Falei disto a um contador que também o conhecia e ouvi a frase que aumentou a minha compaixão: “Ele era baratinho!”
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