Foi um dia entre tantos dias. Um acordar em uma manhã. E o silêncio nascido da confiança de que, no tempo certo, minha mãe entraria no quarto e diria que era o tempo do café e da arrumação para escola.
Foi um dia entre tantos dias. Um acordar em uma manhã. E o silêncio nascido da confiança de que, no tempo certo, minha mãe entraria no quarto e diria que era o tempo do café e da arrumação para escola.
Saudade do tempo em que o primeiro sorriso era o sorriso de minha mãe. O silêncio do meu quarto era o silêncio oferecedor de memórias já naquele tempo. Sozinho eu pensava. Eu pensava simplicidades.
E, então, a música. Ao longe. Um pouco mais perto. Saí do quarto e fui ver na janela da sala o som bonito. Era uma procissão.
No interior onde nasci, a procissão fazia com que as janelas se abrissem ainda antes de as casas amanhecerem. A música era cantada por mulheres e homens que caminhavam nas calçadas e nas ruas de paralelepípedo. Eu achei bonito, bonito demais.
Enquanto escrevo, cantarolo a música que estava em minha memória aguardando alguma necessidade de ser novamente. O que cantarolo me faz voltar ao interior, à cidade pequena.
Eu conhecia os caminhantes. E sorria da janela. De repente, vem minha mãe e dá um abraço por trás e um beijo de bom dia. Dia nenhum deixaria de ser bom depois daquele beijo.
Ficamos juntos um pouco olhando o fim da procissão. E depois fomos para a cozinha. E depois o café. E o pão esquentando com manteiga na frigideira. E algumas frutas que ela havia descascado para mim.
O que tem essa lembrança de tão especial? Eu não sei. Eu sei que a felicidade se alimenta desses instantes. Na cidade pequena, havia o sítio do meu pai. E o açude. E o banho na água. E a vista para o céu. Não poucas vezes, deitávamos na grama para ver o sol dizendo que o dia já havia cumprido o seu ciclo.
E havia uma parreira em que acalmávamos a fome com sabor, colhendo algumas folhas de uva para minha mãe e minha tia e minha vó cozinharem charuto, uma comida aprendida na Síria.
Do sítio, avistávamos a Serra da Mantiqueira. Uma Serra em que montanha e mata fazem como uma escultura de um gigante deitado. Alguns mais místicos diziam ser um desenho de Deus para nos lembrarmos de que o alto existe.
O alto sempre existiu em mim. Eu via o gigante e via mais. Via e vejo na natureza que explode em beleza, cotidianamente, o sorriso de Deus.
Vejo o sorriso de Deus nos cachorrinhos que tive e tenho. Vejo o sorriso de Deus nas crianças que correm despreocupadas com os sucessos. Que liberdade linda a de correr sem ter que vencer. Vejo o sorriso de Deus nos sons da floresta e nos barulhos dos aplausos, quando mulheres e homens aplaudem mulheres e homens fazendo arte nos teatros.
Vejo o sorriso de Deus na música. O sorriso e a linguagem. A linguagem que nos diz a harmonia. Que diz as notas, diferentes umas das outras, e as pausas, tão necessárias, na música e na vida. Vejo o sorriso de Deus, quando fecho os olhos e os sorrisos dos meus pais sorriem o tempo em mim.
Foi um dia entre tantos dias. Foi um dia pleno. O tempo é senhor e, vez em quando, é servo. O tempo pleno desdiz o tempo que passa. O tempo pleno permanece.
Vejo o sorriso de Deus dentro de mim, quando consigo alimentar o olhar. Há uma criança que prossegue em mim dizendo que eu prossiga vendo. Que o acordar de todo dia é uma convocação à vida.
Já perdi amores amados demais, já disse adeus mais de uma vez. Já chorei o choro da orfandade. Já sonhei com o ventre materno onde tudo é proteção e alimento.
Alimento a mim e a quem posso com a decisão de parar o tempo para contemplar o tempo e, na contemplação do tempo, ver e sorrir o sorriso de Deus.
Os que já se foram e os que ainda virão estão unidos a mim nesse ver. Nesse ver simples e grandioso. Despreocupado de quereres ou de intensificação. Como uma água que se bebe em alguma fonte que brota de alguma rocha que nasce de alguma intenção. Uma intenção criadora e alimentadora de vida.
É o sorriso de Deus que nos sacia a sede e que nos faz brotar a fome de viver.
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